Há uma alegria quando em um texto de um livro eu descubro trechos de outro livro que li, só que com um outro olhar, trazendo respostas para outras questões, aqui, dentro desta escritora que você lê, sim, uma alegria habita.
Mary Del Priori[1] (já falei dela em outro texto) tem um livro sobre a História das Mulheres no Brasil. Mas não é esse livro que eu estou lendo agora e que vou utilizar. Quem me ocupa a cabeceira é Rita Segato[2], com Crítica da Colonialidade em Oito Ensaios.
Rita fala de Mary e traz dois trechos de outras duas mulheres[3]. Bom, aí eu fico mais serelepe ainda. Uma mulher citando a outra, que cita mais uma e mais duas.
Enfim, voltemos ao que interessa, Rita na construção de uma resposta à pergunta descrita por Nelson Rodrigues, no texto que o mesmo trata da visita ao Brasil de Simone de Beauvoir e Sartre, apresenta dois trechos de trechos do livro de Mary: “as escravas trabalhavam principalmente na roça, mas também eram usadas por seus senhores como tecelãs, fiadeiras, rendeiras, carpinteiras, azeiteiras, amas de leite, pajens, cozinheiras, costureiras, engomadeiras e mão de obra para todo e qualquer serviço doméstico” e “As estatísticas sobre o Rio Grande do Sul em 1900 mostram que cerca de 42% da população economicamente ativa era feminina (…) não faltavam exemplos de trabalho feminino: lavadeira, engomadeira, ama de leite, cartomante.”
Nelson Rodrigues em “O óbvio ululante”, uma obra que este ano comemora três décadas, tem o seguinte trecho: “eis a pergunta que os brasileiros deviam se fazer uns aos outros”.
Você já sabe qual é a pergunta, mas ainda não quero falar sobre.
Vamos continuar na saga da Rita, na construção dessa resposta e, com ela, reproduzir outra parte do livro: “uma característica da inteligência estratégica que garantiu a sobrevivência de pessoas afro-brasileiras e afro-americanas em geral, ao longo de uma história de repressão e massacre, foi esconder o político no formato de doméstico, vestir os temas da política, isto é, do poder, autoridade, influência e coesão do grupo, a roupagem da domesticidade e do parentesco.”
Deste trecho, trago sobreviver, etimologicamente do latim SUPRAVIVERE, “sobreviver, viver além da expectativa”, de SUPRA, “acima, além”, mais VIVERE, “viver”. Fique com essa informação.
Para ajudar na resposta à pergunta descrita no texto do Nelson, porque ainda não quero falar sobre a pergunta, trago outra autora, conterrânea e colega de profissão, Winnie Bueno[4]: “(…) ser “uma das poucas pessoas negras nos lugares de privilégio ou de acesso ao poder é também uma forma de consolidar estereótipos”.
Nesta discussão, viver compreende um ser e um estar, verbos que aprendemos muito cedo a conjugar, alfabetizados e dentro de uma construção de frase, passamos a reproduzir da vivência e do círculo de pessoas que aos nossos cuidados se ocupam, a construção de frases e de um consciente já fechadinho com a branquitude.
Quem ocupava o seu – eu vou ser? Quem ocupava o seu – eu vou estar?
Se em voz alta repetir a lista acima, eu te ajudo e repito aqui: “ tecelãs, fiadeiras, rendeiras, carpinteiras, azeiteiras, amas de leite, pajens, cozinheiras, costureiras, engomadeiras e mão de obra para todo e qualquer serviço doméstico”, qual a primeira imagem que você vê na sua mente?
Essa imagem é de uma mulher preta?
Seguindo na tentativa de responder à pergunta, que ainda não vem ao caso, vamos aos números. Pesquisa sobre o afroempreendedorismo no Brasil revela que 48,6% dos negócios ainda não têm faturamento, ou seja, que ainda não rentabilizaram seus negócios/Brancos têm rendimento cerca de 40% maior do que negros, mostra pesquisa do IBGE.
Esses dados trazem uma resposta: o empreendedorismo afrofeminino dos espaços pequenos, das portas dos fundos, das áreas da cozinha e da lavanderia, da escassez e da falta de recursos, da solidão. Porque, de ontem para o hoje, o controle financeiro ainda permanece concentrado nos mesmos lugares, nas mesmas mãos. Nas mãos cuja cor não é nomeada.
Eu tenho dados de gênero, raça e quantitativos para falar do cárcere, para falar da escassez, para falar da base, mas não se ousa trazer gênero, raça e quantitativo para falar de fundos de investimento, para falar de patrimônio imobiliário, para falar dos possíveis bolsos que irão incidir os impostos de grandes fortunas.
Bruna Battistelli[5] na ementa já diz a que veio: “é preciso pensar a centralidade de como a branquitude constitui práticas, sustenta privilégios e organiza nosso meio” e cita Layla Saad: “O que você recebe por ser branco tem um custo alto para quem não é branco”.
Então, Nelson, o que Rita responde e que, em 2023, ainda estamos respondendo, é que a pergunta, quando estamos em um contexto de sobrevivência, quando existir e pertencer são verbos que se busca alcançar, não é sobre onde estar, mas sobre o porquê de ser.
[1] Del Priore, Mary(org). Histórias das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2006.
[2] Segato, Rita. Crítica da colonialidade em oito ensaios e uma antropologia por demanda. 1ed. Rio de Janeiro: Ed Bazar do Temp, p.67.
[3] Estes textos são de duas obras com os seguintes títulos: “Mulheres do Sertão Nordestino” e “Ser Mulher, mãe e pobre”, das escritoras Miridan e Claudia.
[4] Bueno, Winnie. Imagens de Controle. Um conceito do pensamento de Patricia Hill Colins. Porto Alegre: Zouk, p.47.
[5] https://seer.ufu.br/index.php/perspectivasempsicologia/article/view/61027
Chris Baladão, bicho raro, formada e por coração advogada, na época em que o curso levava sociais em seu nome, escritora por necessidade de expor a palavra, bailarina porque o corpo exige, professora porque a experiência da vida precisa ser compartilhada.