Para quem está aqui no RS, além de um dia parecer igual ao outro, no último mês: chuva, casas inundadas, tristeza e indignação pairam no ar, rolam em scrolls infinitos nas redes sociais, entre vídeos de voluntários, entre iniciativas que são geradas, entre debates políticos, ambientais, sociais, e entre a desilusão de perceber que nos últimos 30 anos os ambientalistas tanto gritaram que chegou a conta para pagar sobre o uso abusivo dos recursos naturais.
E no meio de tudo isto rolam muitas histórias, de pessoas em ação, de voluntários que são entrevistados no jornais e histórias sobre o impacto das perdas. O maior desastre climático e ambiental no RS é contado pela narrativa oficial em números cheios de desabrigados, de desalojados, de toneladas de alimentos, sempre focando o material, a perda material, sim, que é impactante, gerando efeito cascata.
Mas neste cenário de guerra: sim, um cenário que nunca imaginei viver de guerra de narrativas, de guerra simbólica e de guerra com destruição material, quem se importa com as perdas afetivas? Com o impacto desta tragédia como sofrimento psíquico e social? Vi várias iniciativas individuais de grupos de apoio, de profissionais de saúde mental, entre as tantas batalhas – como a do lixo, a da gestão pública, a da saúde pública – emerge a batalha das saúde mental e bem-estar social.
Quando pensamos em bem-estar social no Brasil, nem sabemos por onde localizar esta thread, porque nosso coeficiente de cidadania é quase nulo. Não temos segurança social mínima, que passa por moradia digna, saúde acessível, alimentação de qualidade, estrutura social de cidades com saneamento, água, luz para TODOS. Então, em um momento como este, a insegurança social explode de maneira exponencial, pois os impactos do desastre se somam às vulnerabilidades sociais e geram outros problemas, como violência, desilusão… Assim como nos indivíduos, as comunidades também possuem um comportamento de psicologia social e apresentam ciclos de fases em situações como estas de desastres.
Tive acesso a uma pesquisa intitulada “Fostering resilience and sustainment for community” e uma das análises que se referia aos ciclos que as comunidades passam em momentos de desastres graves:
- O Pré-desastre;
- O impacto;
- O Heroísmo;
- A lua de mel com as iniciativas dos heróis (coesão em iniciativas);
- A fase de inventário das perdas e desilusões;
- Novos eventos traumáticos;
- E a reconstrução propriamente dita.
O importante é notar o tempo analisado deste estudo, onde a reconstrução acontece um ano depois do processamento de tudo, e a fase mais longa é o inventário e a desilusão, onde é preciso ativar não o positivismo tóxico, e sim a perspectiva de um realismo esperançoso, e para isto é preciso criar mecanismos de apoio, mas principalmente de ressignificação com impacto emocional.
O carro, a casa, o seguro paga. O apoio emergencial o estado ou a sociedade civil fornece. Outras pessoas não se dispõem a passar esta fase e resolvem fazer as malas, irem em busca de uma nova vida, ou até novo lugar na mesmo país, para quem pode (isto daria uma coluna por si só sobre refugiados climáticos).
Mas e quando na fase do inventário, as perdas são afetivas e emocionais da vida de um ente querido (humano ou não humano),ou até de objetos com significados e totens de nossas memórias de vida como um álbum de bebê, um livro preferido, as cartas de amor da juventude, o vestido de casamento, os objetos que são nossas conexões afetivas no espaço-tempo de nossas vidas e que nos configuram como histórias singulares em jornada neste mundo. Qual é o impacto destas perdas? Como ajudar a ressignificar estas perdas? E contribuir de maneira material para a promoção de um maior bem-estar social pós-desastre? Foi em cima deste desafio que estamos há mais de uma semana juntos, um time de 6 pessoas diversas tanto em habilidades quanto de regiões do Brasil, mobilizados para entregar uma solução para esta dor através de tecnologia para a humanização.
Falei na coluna passada, quando trouxe o conceito de tecnologia social, que criar soluções para os desafios da nossa humanidade é o que nos fez chegar até aqui, tanto para o bem quanto para o mal. Então hoje, nesta segunda, dia 27.05.2024, estamos entregando um projeto pensado e realizado em maratona, durante mais de 76 horas de trabalho voluntário ininterruptas. Se será finalista ainda não sei, mas sei que só de pensarmos sobre tudo isto e modelarmos uma ferramenta já ativou nossa criatividade para usar a tecnologia em favor das pessoas e dos seus dilemas, e não apenas para superar as habilidade humanas. Que se escolhida poderá gerar impacto positivo na vida de muitas pessoas ressignificando itens perdidos em uma jornada de apoio, arte e afeto ajudando a construir a resiliência necessária para chegarmos à fase de reconstrução das comunidades.
Foto da Capa: Felipe Menezes/Divulgação
Mais textos de Patrícia Carneiro: Leia Aqui.