Infelizmente, algumas empresas no intuito de ganharem uma sobrevida enquanto tentam superar os seus problemas, de obterem financiamentos, evitarem o pagamento de suas dívidas, transferem boa parte dos recursos econômicos da sociedade empresarial para outras empresas ou pessoas, ou até mesmo para seus sócios ou terceiros, mascarando, assim, seus balanços e resultados, com lançamentos contábeis que não retratam a realidade. Fazem uma contabilidade “criativa”, eufemismo para “fraudulenta”.
Assim, essas empresas seguem operando por mais um tempo, que pode ser até mesmo anos, comprando e vendendo produtos e serviços “de” e “para” terceiros que inocentemente confiam que terão seus créditos pagos ou produtos e serviços entregues, por aquela corporação que publica excelentes resultados baseados em lançamentos e documentos fraudulentos.
Só que no mundo dos negócios, assim como na canção da Bethânia, há também um momento em que “chega de tentar dissimular e disfarçar e esconder, o que não dá mais para ocultar” e um dia finalmente “explode coração”, leia-se “a empresa”, e os credores, investidores e clientes da empresa fraudadora de balanços sofrem um tremendo impacto. Muitos têm prejuízos enormes, ficam sem capital de giro, incapacitados de operar por receberem os produtos ou serviços que contrataram e pagaram, e podem ir à falência. Até mesmo bancos, dependendo do tamanho do calote que levarem, podem ter sérios problemas.
Vale lembrar, por exemplo, do escândalo da Enron, no ano 2001, que prejudicou inúmeros investidores, fornecedores, clientes e trabalhadores em vários países, e resultou inclusive na legislação “Sarbanes-Oxley-Act”, de 2002, que é uma legislação criada para restaurar a confiança pública dos investidores nas empresas de capital aberto e para tentar impedir que fatos como aqueles, especialmente fraudes contábeis, se repetissem. Essa legislação calcada na “governança corporativa”, trabalha essencialmente com os princípios da transparência, equidade, prestação de contas e responsabilidade corporativa. Como várias empresas brasileiras são obrigadas a cumprir com essa lei, para que possam ser listadas nas bolsas de valores norte-americanas, a partir de então, até mesmo no Brasil aumentou muito a importância dos mecanismos internos de controle das empresas, que também são obrigadas a seguirem os mecanismos de controle exigidos pela Comissão Brasileira de Valores Mobiliárias (CVM).
Mas voltando ao tema central desse artigo, esses documentos contábeis fraudulentos trarão efeitos civis e penais para os sócios, administradores que tiverem participado dessa falcatrua.
As fraudes podem ocorrer de diversas formas, podem ser para ocultar débitos, créditos de difícil liquidação, desfalques, empréstimos, remessas para outros países, transferências do patrimônio das empresas para as pessoas físicas dos sócios ou “seus laranjas” ou para outras empresas do mesmo sócio ou de “laranjas”, etc. A criatividade dos fraudadores e “picaretas” é enorme. Apenas dei alguns exemplos.
De acordo com a nossa legislação, sob a ótica da responsabilidade civil, os sócios que aprovaram os balanços que não traduziam a situação real da empresa obviamente serão responsabilizados, e deverão nessa situação específica, em que foram fraudadores, agiram com má-fé, responderem perante a própria empresa, terceiros, os credores, investidores, financiadores e clientes da empresa, pelos prejuízos que lhes causarem. A extensão e o dever de indenizar, dependerá de cada caso concreto.
Veja-se que o Código Civil brasileiro estipula que “Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.”. Isso nada mais é do que a desconsideração da personalidade jurídica da empresa, para que se possa ir atrás dos bens dos administradores ou sócios da empresa.
No caso das relações protegidas pelo Código do Consumidor, a desconsideração da personalidade jurídica será mais fácil. Conforme previsto na referida legislação “O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.”.
Em se tratando de sociedades anônimas, a lei estabelece que os “administradores são solidariamente responsáveis pelos prejuízos causados em virtude do não cumprimento dos deveres impostos por lei para assegurar o funcionamento normal da companhia, ainda que, pelo estatuto, tais deveres não caibam a todos eles”, e também que compete “à companhia, mediante prévia deliberação da assembleia geral, a ação de responsabilidade civil contra o administrador, pelos prejuízos causados ao seu patrimônio.”.
Isso soa muito bem no papel, mas a realidade é que dificilmente são localizados bens das empresas e dos fraudadores suficientes para saldarem as dívidas, e muita gente boa, na maior parte das vezes, com muito menos recursos do que os sócios que cometeram as picaretagens, acabam levando a pior.
Imagine a situação do produtor agrícola ou industrial que entregou toda a sua produção de um ano, e fica sem o pagamento; ou do industrial que fez adiantamentos para a compra de equipamentos, que para ele representam um custo expressivo, e fica sem nada, sem ter como produzir, cheio de dívidas e sem capital de giro.
Considere também a situação das pessoas que usaram suas economias para comprar um imóvel, de uma construtora que aparentava ser séria e com boa situação financeira, e ela “quebra” sem condições ou vontade de ressarci-los por eventuais danos que tenha lhes causado.
Menos dramática, mas também desastrosa, será a situação dos consumidores que compram objetos caros, passagens aéreas ou bens de consumo, por exemplo, de uma empresa que está à beira da falência, mas finge através de lançamentos e balanços fraudulentos estar muito bem, e não recebem tais bens e serviços.
Bastante difícil será também a situação do investidor que tem parte substancial do seu patrimônio em ações de uma empresa, que informava para a CVM e para o mercado uma situação financeira bem distante da publicada nos seus balanços e informativos.
Sob o ponto de vista criminal, essas fraudes contábeis podem ocorrer antes do pedido de recuperação judicial ou da decretação da falência, e até mesmo no curso do processo falimentar.
A Lei de Recuperação de Empresas e Falência (LREF), nas suas disposições penais, descreve algumas condutas que caracterizam fraude a credores:
– Elaboração de escrituração contábil com dados inexatos;
– Omissão, na escrituração contábil ou balanço, de lançamento que neles deveria constar, ou alteração de escrituração ou balanço verdadeiro;
– Destruir, apagar ou corromper dados contábeis ou negociais armazenados em computador ou sistemas informatizados;
– Simulação da composição de capital social;
– Destruição, ocultação ou inutilização, total ou parcialmente, dos documentos contábeis obrigatórios;
– Contabilidade paralela e distribuição de lucros ou dividendos a sócios e acionistas até a aprovação do plano de recuperação judicial.
Outrossim, a LREF expressamente determina que nas mesmas penas incidem os contadores, técnicos contábeis, auditores e outros profissionais que, de qualquer modo, concorrerem para as condutas criminosas, acima mencionadas, na medida de sua culpabilidade.
Nessas situações, caberá ao Ministério Público (MP) requerer a instauração de um inquérito policial ou a propositura da ação penal para punir os responsáveis por tais crimes.
Veja-se que esses atos fraudulentos não prejudicam apenas os credores, mas também induzem a erro os juízes, os integrantes do MP, os participantes da assembleia dos acionistas, o comitê judicial, os novos administradores, financiadores, eventuais terceiros que queiram investir ou adquirir a empresa, parceiros comerciais, consumidores etc.
Todavia, tratando-se especificamente dos crimes previstos na LREF, mesmo que os atos fraudulentos tenham ocorrido antes da decretação da falência, somente após a sentença que a decretar serão puníveis as infrações previstas na lei de falimentar.
Cabe destacar que na falência, na recuperação judicial e na recuperação extrajudicial de sociedades, os seus sócios, diretores, gerentes, administradores e conselheiros, de fato ou de direito, bem como o administrador judicial, equiparam-se ao devedor ou falido para todos os efeitos penais previstos na lei de falências.
Quanto aos contadores, destaque-se que a Norma Brasileira de Contabilidade – NBC -T-11 considera fraude, o ato intencional de omissão ou manipulação de transações, adulteração de documentos, registros e demonstrações contábeis; e erro, o ato não intencional resultante de omissão, desatenção ou má interpretação de fatos na elaboração de registros e demonstrações contábeis,
Essa legislação também prevê que “ao detectar erros relevantes ou fraudes no decorrer dos seus trabalhos, o auditor tem a obrigação de comunicá-los à administração da entidade e sugerir medidas corretivas, informando sobre os possíveis efeitos no seu parecer, caso elas não sejam adotadas”.
Mesmo tendo essa norma previsto que a “responsabilidade primária na prevenção e identificação de fraude e erros é da administração da entidade, através da implementação e manutenção de adequado sistema contábil e de controle interno”, veja-se que caberá ao auditor realizar seu trabalho de forma a detectar fraudes.
Em que pese a legislação brasileira seja moderna, e apresente várias possibilidades e soluções para esses problemas, como se disse acima, a dificuldade está em localizar onde foram parar os recursos desviados da sociedade ou os recursos dos sócios. Some-se a isso, as caras, complicadas e demoradas batalhas judiciais, que podem envolver inclusive jurisdições de diversos países, caso o patrimônio desviado da sociedade ou dos sócios estejam em outros países. Lamentavelmente, alguns empresários e profissionais, somente cumprem as leis, quando há uma severa fiscalização e sentem que poderão sentir o peso da espada da justiça.