Motoboy negro é agredido com faca por um homem idoso branco, enquanto estava sentado com colegas de trabalho em uma calçada de um bairro classe média em Porto Alegre. Testemunhas chamam a Brigada Militar que, ao invés fazer a prisão em flagrante do agressor, imobiliza e prende o homem negro por “desacato”. Este fato ocorrido há poucos dias é mais um dos tantos acontecimentos absurdos que escancaram o racismo estrutural enraizado na sociedade, em especial nas forças policiais. Racismo este, vale reforçar, que é sistêmico e que atinge em cheio as instituições, públicas ou privadas, que acabam por perpetuá-lo ao não fazerem a devida autocrítica.
No que tange ao Poder Público, é revoltante constatar, pelas recorrentes denúncias de casos semelhantes ao do motoboy, que pouco ou nada é feito para prevenir, coibir e combater o racismo já na formação dos servidores da segurança. O que se percebe, na maioria das vezes, é a negação do fato, a reação defensiva da instituição e/ou o ataque ao comportamento das vítimas, como forma de justificar a ação equivocada. Nesse sentido, o combate ao racismo na estrutura dessas instituições não avança ou, pior, volta muitas casas para trás.
E para que se possa fazer o devido enfrentamento, urge que haja o letramento racial em todos os âmbitos da sociedade, ainda mais no setor de segurança pública. As estatísticas são irrefutáveis e comprovam a violência de Estado sistematicamente direcionada ao negro, sempre considerado suspeito até segunda ordem. Isso prova que uma parcela significativa da sociedade não está tendo os seus direitos preservados em detrimento da outra. Afinal, as instituições policiais tem as mesmas obrigações de servir e proteger cidadãos brancos e negros. Mas, na prática, como diz o antropólogo e professor Kabengele Munanga, “o racismo é um crime perfeito no Brasil, pois quem o comete acha que a culpa está na própria vítima”.
No incidente do motoboy, em específico, as testemunhas registraram em vídeo o homem negro que fora esfaqueado, a vítima, portanto, recebendo o tratamento que caberia ao criminoso; e o homem branco, tranquilo, ele próprio a rir-se, diante da manutenção do seu privilégio, reforçada pela ação lamentável de corporações policiais cuja falta de letramento racial, as coloca do lado errado da justiça.
Este não é um caso isolado. E infelizmente, precisamos, diante de cada ocorrência dessa natureza, que já se tornou corriqueira, reiterar a urgência de um reposicionamento das forças de segurança. Somos cidadãos e cidadãs pagadores de impostos e devemos exigir que esse reposicionamento esteja garantido para além de notas oficiais generalistas e pouco comprometidas com mudanças que demandem reflexões e transformações nas estruturas dessas policias.
Não se trata de demonizar as forças de segurança ou os seus agentes. Pelo contrário, o esforço em trazer alterações e correções na atuação dessas instituições e na formação desses trabalhadores é prova de que a sociedade não só entende a importância dessas corporações, como quer que exerçam esse oficio de forma igualitária com respeito e dignidade para negros e brancos, já que ambos têm os mesmos direitos e deveres.
Para que isso ocorra de fato, primeiramente, é indispensável que haja o reconhecimento dos erros por parte dos responsáveis por essas instituições. Afinal, aquilo que não entendemos como errado, jamais suscitará a reflexão necessária para que seja transformado. Só então, colocar o problema em debate dentro das corporações a partir do estabelecimento de divisões para tratar da questão, da disponibilização de cursos de letramento racial, da criação de protocolos de ação orientados por essas novas diretrizes, além da adoção de programas internos e de monitoramentos que observem avanços nesse sentido. Externamente, legislações ainda podem ser propostas ao Executivo e ao Legislativo para fortalecer as iniciativas adotadas nas polícias, bem como o combate ao racismo estrutural em todos os âmbitos da sociedade.
São esses os reais e efetivos compromissos que devem ser assumidos para que tenhamos forças policiais verdadeiramente engajadas na luta antirracista e prontas a exercer sua função com maestria. Do contrário, seguiremos a assistir cenas deploráveis, como o riso debochado do homem branco que atacou com faca o rapaz negro ao vê-lo sendo colocado no camburão da Brigada Militar. Ainda há tempo. Que possamos então, como sociedade, rir por último.
Juliano Guedes é administrador de empresas, proprietário da PNE Consultoria de Projetos e Negócios Étnico-raciais e associado da Odabá – Associação de Afroempreendedorismo.
Foto da Capa: Reprodução do Instagram (@nietzsche4speed)