Todos. Todas. Talvez todes (e eis que já vou me insinuando aqui como candidato a alguma instância de cancelamento, a depender do que virá na sequência…).
Do alto da minha senioridade sexagenária, tenho mais uma vez a sensação de que não estamos diante de um fenômeno novo, mas tão somente diante de vinho velho em garrafa nova, como se usa dizer. Fui aluno do Curso de Catecismo da Igreja do Espinheiro em Recife (cinco anos inteiros – formação completa), lá pelos anos 60 – 70 do século passado, onde pela primeira vez, dentre outras revelações, soube da existência do Index Librorum Prohibitorum, relação de livros e autores banidos (era o termo da época), onde figuravam autores e obras a NÃO serem lidos pelos católicos. Nem sequer mencionados. Foi assim que soube, pela primeira vez, de um autor-obra para os quais o banimento funcionou como convite à contravenção – o Dr. Sigmund Freud.
Freud, justamente ele, sobrevivente ao cancelamento eclesiástico-clerical, trouxe elementos para explicar o quanto a aprovação social nos move, nos direciona, nos aprisiona. Donde a força do cancelamento como ferramenta de controle político-social. Exemplo histórico-literário dramático, nessa direção, é o relato das aventuras e desventuras de Leon Trotsky, concretizadas num golpe de martelo no crânio dele, Trotsky, tal qual relata o maravilhoso romance de Leonardo Padura “O homem que amava os cachorros”.
A comunidade que produz avaliações e textos, divulgados mal saem do forno por via digital, e que, em certa medida, se candidata à pomposa condição de “influenciadora”, sabe bem do que se fala aqui. Maria Rita Khel idem. Wilson Gomes, ibidem. Todos envolvidos recentemente com o debate crítico acerca do que contemporaneamente tem se denominado de “Identitarismos”. As ferramentas de busca vão me poupar aqui de fornecer resumos perigosos (nessa conjuntura) – vou me limitar a anotar que a primeira, notadamente, a psicanalista Maria Rita Khel, vem sofrendo carga intensa, que ultrapassa perigosamente o contexto argumentativo envolvido, e recupera a genealogia (!!!) de Maria Rita, aludindo a um avô eugenista da mesma, indutor de uma herança maldita e amaldiçoadora para a neta. Via DNA. Cesare Lombroso redivivo, com suas “marcas caracteriais” estampadas no nariz adunco do judeu, nos olhos claros do colonizador branco. Eis que o avô de Maria Rita aparece como suficiente para a condenação da neta ilustre. E de seu cancelamento por alguns.
Ser cancelado, nessa contemporaneidade brasileira insalubre, implica em iniciativa de aniquilamento tríplice. Primeiro, busca-se reduzir à nulidade o ponto aludido pelo cancelado, sem que se admita possibilidade de escuta e contraditório para o mesmo; o “lugar de fala” do infeliz é uma das razões deste primeiro aniquilamento. Segundo, aniquila-se a trajetória, a biografia, a reputação e a carreira do(a) cancelado(a), num procedimento de engenharia reversa de difamação (isso antes de qualquer comprovação efetiva – judicial, por exemplo – pois quem condena se arvora o direito do julgamento). Terceiro, submete-se o(a) cancelado(a) a estigma psicossocial (vide Erving Goffman) que arruína sua vida afetiva, relacional, social, condenando-o(a) ao merecido isolamento dos banidos.
O ponto certamente assustador desse processo infame se apoia sobre a irracionalidade, sobre o circunlóquio do inquisidor que “dialoga” com a bruxa possuída não para minimamente ouvi-la, mas para dar a ela a chance da admissão de sua culpa, de sua miséria moral, de sua danação e seu merecido castigo – o que seria igualmente atingido caso não houvesse admissão de culpa nenhuma. O fogo purificador como saída única para preservar a todos – inclusive a bruxa demoníaca – do aniquilamento dos impuros, dos insensatos, dos cancelados.
Só que não. O “Martelo das Bruxas” (Malleus Maleficarum), o livro de cabeceira do Inquisidor, não serve como ideário de quem busca o bem comum, o interesse coletivo, a coisa pública (república), o poder compartilhado pelo debate e pelo revezamento no comando (democracia). O cancelamento é a contrafação da possibilidade de antítese para uma tese, rumo a uma síntese. Resulta da crença mórbida e soteriológica de que instâncias da verdade não estão submetidas a cotejamento – a não ser por parte daqueles que têm atestado de pureza de ideias fornecidos por círculo de ideias puras. Disso para as fogueiras de livros de autores malditos, alimentadas pela Juventude Hitlerista, não há sequer um passo.
A perspectiva ameaçadora das diversas instâncias de cancelamento da contemporaneidade me faz recuperar a fala de Branca, personagem da peça “O Santo Inquérito”, de Dias Gomes, às vésperas de sua execução e por não ter abjurado: “Há um mínimo de dignidade que o homem não pode negociar, nem mesmo em troca da liberdade. Nem mesmo em troca do sol.” Nem mesmo para contemporizar, por temor aos cancelamentos.
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Foto da Capa: Index Librorum Prohibitorum / Reprodução