A visão binária e extremista é uma praga que vem se espalhando de maneira perturbadora por vários aspectos da existência humana. O tudo ou nada dos conflitos bélicos, dos posicionamentos políticos e das teorias sobre comunicação e linguagem nos cerca de maneira sufocante também na vida cotidiana. Chegamos a um ponto em que até a forma como tomamos café (com ou sem açúcar, passado ou expresso, expresso ou espresso) pode render discussões acaloradas.
E somos cobrados de tomar uma posição, especialmente quando não somos adeptos de adorar líderes ou ídolos cegamente, não escolhemos uma ideologia ou religião para orientar todas as nossas decisões ou opiniões de maneira inflexível ou não consideramos que seja necessário se posicionar sobre ab-so-lu-ta-men-te tu-do. Para quem tem a capacidade de ver diferentes tons de cinza (ou, melhor ainda, toda a escala Pantone), é bem complicado se sentir à vontade em discussões com quem nos exige decidir entre o preto ou o branco e ficar lá, sem desviar um milímetro da convicção.
Na grande 5ª série em que o mundo está se transformando, não me espantará se daqui um tempo virmos chefes de estados mostrando a língua uns para os outros e dizendo “estou de mal”, como fazíamos nos recreios escolares dos anos 1980. Sendo bem sincera, isso me assusta mais do que a crise climática, o machismo/racismo/preconceito estrutural nosso de cada dia, a falta de solidariedade e o preço das coisas no supermercado. Assusta mais inclusive porque esses temas tão fundamentais também têm sido tratados na base da crença cega e do “simples assim”.
Em vez de tentarmos escutar o que o outro está dizendo e ver se há algum ponto em comum de onde partir, viramos-lhe as costas, porque ele usou um termo equivocado segundo a nossa cartilha ou não está 100% alinhado com o que defendemos. E o que defendemos é impenetrável, imutável, inegociável. Mais ainda: o que defendemos guia todas as nossas escolhas e opiniões sobre tudo. Assim, seguimos a caminho do buraco.
Já tive inveja, mas hoje tenho ranço dessa gente que tem certeza de que vai mudar o mundo com um tweet, um post, uma fake news distribuída pelo WhatsApp, um rompimento com um familiar. Com uma bandeira. Aliás, o problema da bandeira sempre empunhada sabe qual é? Quando bate um vento torto, que não estava no script, ela vem na nossa cara e prejudica a visão.
Que grande desserviço nos prestou Cazuza ao cantar insistentemente “ideologia, eu quero uma pra viver”. Precisa, não, menino! Arranja um propósito, dá um sentido pra tua existência e está mais do que suficiente. Pensa em como melhorar a vida de quem te cerca, em como impedir injustiças ao teu redor, em levantar a voz contra iniquidades quando for possível. Mais do que encontrar um ismo para chamar de nosso, pensemos em qual marca vamos deixar no planeta.
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