Assisti, no canal Bis, ao documentário “Ella Fitzgerald: Just One of Those Things”, dirigido por Leslie Woodhead. O filme teve o mérito de organizar para mim as três fases da carreira da genial cantora dos Estados Unidos. É claro que trouxe também, como um documentário que se preze, elementos da biografia, mas sem deixar de se guiar pela música.
Ella teve uma infância cheia de privações. Ficou órfã aos quinze anos. Viveu nas ruas. Foi presa e encaminhada a um reformatório. Fugiu. Ganhava uma grana com sapateado e cantando na calçada. Com o pouco dinheirinho, pagou aulas com uma professora de piano. Da infância, guardava a lembrança dos discos da sua mãe. Gostava de ouvir as gravações de jazz de Louis Armstrong, Bing Crosby e da cantora Conne Boswell, que foi uma importante referência para o seu canto.
Aos dezessete anos, fez sua estreia como cantora, ganhando um concurso para artistas amadores no Harlem. No ano seguinte, em 1935, foi contratada pelo baterista Chick Webb, líder de uma big band que já tinha uma boa atuação na cena da época. Desse encontro, surgiram seus primeiros sucessos, entre eles a composição que Ella assina, A-Tisket, A-Tasket, de 1938. É o período daquela sua voz de menina, alegre na era da swing. Em 1939, morre Chick Webb, e a cantora assume a banda, que passou a se chamar “Ella Fitzgerald and her Famous Orchestra”.
O segundo momento de sua trajetória vem na metade dos anos 1940, com o bebop. Ella passa a usar a voz como um dos instrumentos da banda, sobretudo, como um instrumento de sopro. Improvisa junto com os músicos de Dizzy Gillespie, propondo desafios de fraseados muitas vezes difíceis de serem executados pelas feras que a acompanhavam.
A terceira fase vem de seu convívio com o empresário do jazz Norman Granz. É desse encontro que nascem pérolas como a série de duetos com o pianista Ellis Larkins, lançados em 1950 como “Ella Sings Gershwin”. Nesses registros, estão, para mim, as maiores interpretações não só de Ella Fitzgerald, mas de qualquer ser humano que tenha cantado.
Concentrar o álbum na produção de um grande compositor norte-americano foi o caminho novo na carreira proposto por Norman. O trabalho era gravar songbooks com canções dos anos 1920, 1930. Canções, em boa parte, compostas para espetáculos da Broadway. Quando ouviu a proposta, Ella pensou: “Quem vai querer ouvir isso?”. Sua série de gravações, como a de “Ella Fitzgerald Sings the Cole Porter Songbook”, lançado em 1956, mudou a história da música de seu país. Lançou um novo olhar, e uma nova audição, sobre o passado, sobre o que havia de conteúdo novo em algo dado como antigo. Além disso, reavivou essa produção para o resto do mundo e projetou a carreira de Ella no cenário internacional para sempre.
Encerro aqui com um haicai do meu livro “Quase eu”, de 1992:
nada de novo
só a lua nova
de novo