Circula já há algum tempo a ideia de que o encontro com o tédio pode ser produtivo e, mais ainda, desejável. Nesse sentido, é certo que especialistas em infância têm razão quando dizem que as crianças — e não só elas — precisam aprender a conviver com uma cota de tédio. Quer dizer, entender que nem tudo é entretenimento ajuda a conectar com uma espécie de “mal-estar estruturante” que nos impulsiona a andar pela vida —alô Freud! E, às vezes, é simplesmente como diz Cartola: preste atenção, o mundo é um moinho!
Em todo o caso, as considerações a respeito das “benesses do tédio” — se bem são frutos de uma leitura acertada sobre a frivolidade excessiva presente na sociedade contemporânea— merecem um pouco mais de consequência. Acionar o botão do tédio por si só, não parece ser suficiente para promover uma vida mais orgânica e criativa. Além disso, colocar o tédio na prateleira dos afetos indispensáveis pode conduzir, por espelhamento, ao mesmo vazio que se tenta evitar com uma vida de entretenimento estéril.
Assim mesmo, o tédio tem uma história pregressa em relação à criação. Quer como um estado momentâneo e administrável, quer como um afeto mais perene, o tédio acena com a lembrança de um antigo estado psicopatológico: a melancolia. É verdade que essa é uma palavra um tanto desgastada, da velha psiquiatria, mas ela permite um flanco mais aberto do que a sua substituta contemporânea, a depressão. Mélas cholé, “bilis negra”, era um dos quatro humores da nosologia de Hipócrates, cinco séculos antes de Cristo. Neste viés, a história da psicopatologia nos ensina que a melancolia foi uma das primeiras enfermidades mentais catalogada.
Mais de dez séculos depois, é possível verificar na linha do tempo, a partir do século XVI, a associação da melancolia a criadores plasmados em uma nobreza e aristocracia europeia. Basta que lembremos do criador do gênero ensaio, Montaigne (1533-1592). Portanto, já é bastante antiga a carreira do taedim vitae — o tédio da vida — como motor criativo de alguns cânones tristonhos. Baudelaire, Benjamin, entre outros, se utilizaram de suas tristezas e angústias para escrever. Desse modo, consolidaram o gênero ensaístico e uma estética melancólica que ainda perdura em muitos campos. Ademais, este estilo soturno integra muitas personalidades artísticas, performando uma intelectualidade que —nem sempre com justiça— se contrapõe à alegria como se esta fosse menos astuta.
Evidentemente, há um componente social e racial em tudo isso. E aqui surge outra palavra associada à discussão: o ócio. Tédio e ócio facilmente se confundem. Enquanto o primeiro diz de certa incapacidade de estimulação com as coisas da vida, o outro fala sobre estar desocupado —para muitos, de forma imoral. E agora nos encontramos com uma conta bem fácil: enquanto o ócio do pobre é vagabundagem, o do rico é criativo. E, como um terceiro termo, surge a imagem de um burguês sacrificado: aquele que acessa os mesmos recursos que o rico da nobreza por meio de um suposto mérito. Mérito de trabalhar com aquilo que — mais uma suposição — o pobre não estaria disposto. Nessa estética do sacrifício burguês vem a ideia capitalista de uma produtividade incessante, de um entretenimento sem fim, além do registro e contabilidades desse sacrifício.
Como se trata de estética e de imagem há que se perguntar pelo registro. Deus ajuda quem cedo madruga dizia o burguês protestante. Trabalhe enquanto eles dormem é a versão atualizada das redes sociais. Ambas gozam da mesma lógica de um mérito no sacrifício que, ardilosamente, faz esquecer as condições de acesso e oportunidades prévias (as ancestrais). Antes que nada, as redes sociais são ferramentas que lidam com registros de imagem. Há espaço para registrar — e, então, fiscalizar — tudo aquilo que se pode contabilizar: empregos, consumos, relações, viagens e até mesmo experiências místicas.
Então, mais do que lutar com um sentimento de enfado, inutilidade e improdutividade, o desafio da convivência pacífica com o tédio pode ser a sua invisibilização. Como registrar? Quem vê meu tédio? Se o tédio é invisibilizado — e não sou artista — não é tão simples sustentá-lo. Como reles mortal, quem vê meu tédio é porque está comigo fora das condições de performance e exibição. É meu humano íntimo, aquele que partilha meus silêncios, me vê feia, bagunçada, chorona etc. Quem não está perto, ou não suporta o meu tédio, só acessará a minha vida instagramável. Vai acompanhar minhas atividades, deixar alguns likes, proporcionar certa agitação, mas não vai lidar com a verdade do meu enfado.
Então, quem vê meu tédio não deveria ser um alucinado tentando me entreter a qualquer custo. Menos ainda, um austero que me fará suportar a ferro e fogo essa sensação. Quem vê e partilha meu tédio simplesmente exerce uma tolerância empática. A isto alguns dão o nome de intimidade, outros, de amor.