Queria que minha mãe morresse de novo. Queria tudo de novo, até o momento do seu último suspiro. Ainda que não tenha sido exatamente um último suspiro. Foi quando a última arfada de ar não chegou, nunca chegou, nem depois de incontáveis segundos. Eu segurei a mão dela enquanto ela deixava aquele quarto de hospital e o meu cansaço bem ali, ao lado dela. Um cansaço e simultaneamente um desejo que ela partisse logo. Um desejo de entrega e de que tudo aquiloquenãoseibemoqueé de perder alguém tão entranhado, encarnado, acontecesse de uma vez por todas. Uma vez por todas. Que expressão interessante. Uma vez que valha por todas. Se existe uma vez por todas de algo é mesmo a morte. A morte é de uma vez por todas. Por todas as infinitas vezes que morremos ao longo da vida, ou por todas as coisas que amamos e morrem, se perdem, se estilhaçam ou nos estraçalham por dentro.
Queria que minha mãe morresse de novo para poder reviver todo o impensável puerpério dessa perda. Uma nova vida nasce imediatamente depois da morte de alguém. Uma placenta perdida para sempre. A minha, a dela, a nossa. Queria o velório de novo, queria chorar mais, queria receber mais abraços e estar mais frágil. Não queria ter voltado a trabalhar tão rápido, não queria ter acolhido tanto e não ter tentado fazer questão de ter sido mais forte e madura. Queria ter falado algo antes de tudo se queimar. Queria ter usado outra roupa, queria ter sido corajosa e aceitado ser a pessoa a ir até o caixão conferir se era ela mesmo que jazia lá dentro. Queria que a foto tivesse sido outra, queria que esses 12 anos tivessem sido diferentes. Outro luto, outras lutas. Algumas decisões erradas, outras que demoraram demais a serem tomadas e outras que deixei que decidissem por mim.
Perder alguém talvez seja uma experiência ainda mais universal e insubstituível do que nascer ou morrer. Mas a grande diferença é que das nossas perdas podemos tentar falar, da morte não. Das nossas perdas podemos ganhar outras coisas. Da morte, não. A perda irreversível. Ontem num grupo de amigas comentávamos sobre um livro que eu ainda não consegui ler, mas do qual amo o título: “A ridícula ideia de nunca mais te ver”, de Rosa Montero, e falávamos sobre esse grande absurdo que é a impossibilidade do reencontro físico com quem já partiu. Conceber que nunca mais encontraremos, encostaremos ou ouviremos a voz da pessoa perdida é mesmo ridículo.
Já fazem 12 anos. Doze anos. Do-ze. É praticamente inacreditável. Eu ainda caio como uma grande panaca nesse truque incrível do tempo que é passar assim sorrateiro, sem que a gente vá percebendo, até que aniversários de vida e morte, ou marcos evolutivos sociais vão nos atirando na cara que ele passou, que está passando rápido demais. Lembrei da canção da Nana Caymmi “Resposta ao tempo” e da primeira vez em que a ouvi a letra com a devida atenção. Eu sempre presto muito atenção às letras das canções que amo. Nessa, ela fala sobre uma conversa com o tempo e como ela e ele vão conversando do que um pode e o outro não. O tempo ri e afirma que sabe passar, e ela não. Ela fala sobre os amores perdidos e o tempo ri, dizendo que nisso são iguais, porque nem ele e nem ela sabem ficar. Nós somos todos tempo passando rápido demais. Mas a gente – gente, sabe amar. Tempo aprisiona, gente liberta, tempo adormece paixões, gente desperta. O tempo sente inveja dela e quer aprender com gente a morrer de amor para tentar reviver.
Eu queria que a minha mãe morresse de novo para nascer um pouco mais dentro daqueles dias. Uma puérpera às avessas aprendendo de quantas em quantas horas aquela demanda apareceria na madrugada pedindo colo e aconchego. O quanto eu poderia, assim como na maternidade, pedir mais apoio, mais colo também. Perder alguém é perder-se e nesse sentido, os anos vão devolvendo essa propriedade ou então vão nos ensinando a colocar essa nova vida de ausência em novos lugares. A ausência física se reafirma impiedosamente, é claro, mas uma crescente e irrefreável confirmação de si, de que se permaneceu e se herdou em forma de memórias, objetos e lembranças vem como uma certeza incontestável.
Queria que minha mãe morresse de novo para dizer a mim mesma que depois de 12 anos a questão não seria mais a saudade. Agora, é outra coisa que ainda estou tentando nomear.
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