Escrevo esta carta para celebrar a sua vida e a sua obra.
Quero lhe dizer que estou trilhando o caminho que a senhora abriu. Ele está pavimentado, muito bonito e florido. Sei que, quando passou por ele, não era assim, era bruto.
Vejo suas pegadas no caminho que percorro e, quando chego na encruzilhada, entendo que preciso ter minha própria trajetória. Tenho medo, é desafiador, mas então fecho os olhos. Respiro e tenho certeza de que é possível, porque a senhora caminhou e mostrou que podemos.
A senhora é uma representante da família Santos, como eu e milhões de brasileiros. Uma mulher vinda de uma família de maioria feminina, que se destaca em tudo ao que se propõe: nas artes, na cultura, na saúde, na comunicação, entre outras áreas.
Eu a observo em muitas situações. Somos parceiras no trabalho, o que me faz muito feliz, pois é a confirmação de que nossos caminhos se cruzaram. Agradeço sempre que me deparo com essa realidade. Discutir um caso clínico, ouvir seu ponto de vista médico e somar à minha recente prática como psicóloga é um privilégio imensurável. Obrigada.
Sei que os seus feitos grandiosos não a isentam de sofrimento. Lembro-me de quantas vezes a senhora sofreu com inúmeras formas de preconceito, seja velado ou escancarado. A vida não lhe poupou de muita coisa. Quem a vê não nota, pois a senhora foi constituída assim: para seguir em frente, mesmo quando sente que não tem forças. Eu a entendo e respeito.
Desejo que a ancestralidade sussurre ao seu ouvido palavras que a ajudem a compreender por que o caminho é tão árduo e, ao mesmo tempo, tão rico e gratificante. Não falo apenas de medicina, mas da vida como um todo.
Celebremos seu nome, Isabel! Sua prática corrobora com os preceitos africanos e traz a certeza do saber do nosso povo. O que a senhora tem nas mãos é uma tecnologia de cura ancestral, isso é riqueza, isso é humanidade. Parabéns pelos 50 anos de formação.
Para celebrar, utilizei o meu sentir. Não recorri a indicadores ou números que comprovem toda a sua grandeza, porque eles não dariam a dimensão correta. A senhora é a melhor que temos.
Uma médica pediatra que aprendeu e desenvolveu a sua prática em uma sociedade não preparada para recebê-la e, ainda assim, preza pelo coletivo. Um cuidado afrocentrado, capaz de ver e desvendar o que há por trás do sintoma, considerando o contexto de vida de cada um.
Atualmente, temos um número maior de profissionais negros na medicina, trilhando o caminho que a senhora preparou. Se eu pudesse dar um conselho a algum deles, diria para beberem dessa fonte, pois ela ainda está vertendo conhecimento e quer sempre mais. A senhora não para, e seu legado nunca terá fim.
E, sim, me repeti nos agradecimentos, mas nunca serão suficientes.
Encerro esta carta com uma frase de Antônio Bispo dos Santos (um pensador de sobrenome Santos, como eu, a senhora e tantos outros negros deste país), o Nego Bispo, como era conhecido. Ele dizia: “Somos início, meio e início”.
E assim será.
Com amor, Jennifer dos Santos Cereja.
Sobre a homenageada:
Dra. Isabel Constância dos Santos, 77 anos, é a primeira médica pediatra negra do Rio Grande do Sul, tendo se graduado pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), em 13 de dezembro de 1974. Especialista em homeopatia, é fundadora da Aliá Clínica de Saúde Integrada – Clínica de saúde de metodologia afrocentrada para todos. Ex-conselheira do Codene – Conselho Estadual de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra no RS. Atualmente, integra a Diretoria do Simers – Sindicato Médico do Rio Grande do Sul e a Diretoria no Museu da História da Medicina do RS.
Jennifer Cereja é mãe, ativista, psicóloga e palestrante. Trabalha em consultório, apaixonada pela clínica e os atravessamentos que a prática proporciona. As escrevivências, como diz Conceição Evaristo, tem o olhar afrocentrado sempre considerando o indivíduo como protagonista de sua história.
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Foto da Capa: Jennifer à esquerda e dra. Isabel à direita / Marcelo Pires / Jornal da Universidade