…enloquecido, porque não se reelegera depois de mais de 20 anos na Câmara Federal, vagava pelos corredores daquela casa de representantes nos horários mais inconvenientes, batendo de porta em porta, de gabinete em gabinete, de Ministério em Ministério, a repetir um mantra fantasmático que, mesmo terminado o expediente em que nada se expede e nada se impede, e apagadas as luzes do recinto, ainda ecoava nos ouvidos de quem ali passava e dele se apiedava: “Quero cargos, quero cargos!”
Lembrava, às vezes, o Imperador Augusto batendo a cabeça na parede e lamentando a perda de seus soldados na campanha do Reno (“-Varo, Varo, que fizeste de minhas legiões?”), e quase não nos lembrávamos mais que o ex-deputado fora fundador e pastor da IGREJA UNIVERSAL DO VERBO NÃO DECLARADO e que afixara na porta de seu gabinete funcional a divisa daquela reputada denominação religiosa – “NO INÍCIO ERA A VERBA!”-, dístico que, aliás, permanece até hoje, pois que o novo ocupante, homem de grande empatia e magnanimidade, recusara-se a retirar, em homenagem ao seu antecessor. – “Quero cargos, quero cargos!”
Tentaram chamá-lo à consciência de sua nova realidade de ex-representante do povo, ao qual servira durante aqueles rentosos anos em que, aliás, afirmara com eloquência e convicção tê-lo feito “no mais profundo e largo espírito republicano”, colocando o “bem comum acima de seus interesses e só abaixo de Deus”. – “Quero cargos, quero cargos!”
Tentaram convencê-lo de que os cargos só estão à disposição enquanto se pode negociar com o Executivo, assim como as Emendas Parlamentares, instituto de distribuição de verbas que faz com que os deputados nunca se… emendem. – ”Quero cargos, quero cargos!”
Conduzido nosso infausto ex-deputado ao setor médico da Câmara (ao qual ainda tem um injustificável direito), continuava a repetir sua dilacerante litania. Foi internado aos cuidados do Doutor Simão Saliva da Pólvora, grande especialista em Realidades Desvirtuadas e Desvios Cognitivos, na Casa Verde e Amarela. Quem passa em frente daquele Sanatório, onde ele esteve até há pouco, ouve, nas horas avançadas da noite, o sussurro daquele lamento inconformado e inútil: “Quero cargos, quero cargos!”
Faleceu anteontem, tendo, até o fim, se recusado a aceitar os resultados eleitorais que lhe foram desfavoráveis. Foi enterrado no “CEMITÉRIO DOS SANTOS ENCARGOS” por coveiros cujos cargos ele mesmo proporcionara. Sua lápide contém um melancólico epitáfio:
“QUERIA CARGOS. QUE FIQUE, AGORA, A CARGO DE DEUS. ADEUS”.
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Foto da Capa: Taísa Viana / Acervo Câmara dos Deputados