Quem é esta tal de Dona Gelcy? Uma senhora de 92 anos que neste momento encontra-se hospitalizada e que, ao você ler este texto, talvez ela ainda esteja no hospital ou já tenha feito a passagem, mas não se surpreenda se dentro de alguns dias você a encontre passeando por algum shopping. No ano passado ela esteve internada por 34 dias, parecia o fim, mas saiu do hospital e voltou a cozinhar e a sair sozinha para passear e pagar as suas contas. Ela surpreende inclusive aos médicos e enfermeiras do hospital, que desde que foi internada, por duas vezes informaram a família que ela estava com risco de óbito e alguns dias depois estavam impressionados com a sua recuperação. Eles a chamam de “nossa querida fênix”.
Mas por que alguém desejaria ser a Dona Gelcy? A sua maneira de viver e de encarar a vida tem encantado todas as pessoas que dela se aproximam. Trata-se de uma idosa que gosta de estar entre pessoas jovens e que conversa com todos sobre qualquer assunto. Não gosta de falar de doenças e das dores da vida. Ela adora contar as suas histórias, que não são poucas. Entre as suas muitas habilidades, se tornou conhecida pelos quitutes que faz. Amigos próximos já provaram a “Lasanha da Dona Gelcy”, ou doces como o Rei Alberto, a torta de sorvete e os Pudins Getúlio Vargas e o Assis Brasil. Ah! Tem também o famoso sarrabulho que ela faz no Natal. No meio da semana ela já pergunta “vocês vêm almoçar aqui no domingo?”. Fica feliz em receber na sua casa a família e amigos dos filhos e netas para o almoço que ela chama de “almocinho singelo”, mas que sempre é uma “Festa de Babette”. Ah! E, na saída, cada um leva um potinho com o que sobrou, e acreditem, sempre sobra muito.
O termo “Quero ser Dona Gelcy” foi cunhado pela amiga Karen Roepke e logo se difundiu. Muitas pessoas desejam envelhecer com o espírito da Dona Gelcy, pois ela não possui preconceitos com o comportamento da juventude e conversa sobre temas polêmicos respeitando as opiniões divergentes. Costuma dizer: “Que sejam felizes assim”.
Quando perguntada se consegue dormir depois de assistir filmes de terror, ela sempre responde: “Eu sei que tudo isto é pantomina”, eu já vi o Paulo (o filho cineasta) fazendo os filmes dele”. Ela atuou como figurante em vários filmes. Adorei quando ela me contou que assistiu “Cinquenta tons de cinza” e então perguntei se ela não tinha ficado chocada com o que viu, e assim respondeu: “Gostei mais do livro!”
Se numa conversa você a ouvir dizer “escurece”, não se trata de reduzir a luminosidade, este termo no Gelcynês significa “deixe prá lá, não valorize isto”. Sim, existe um vocabulário próprio que somente os familiares e amigos próximos conseguem entender.
Dona Gelcy possui apenas o ensino fundamental, mas é uma devoradora de livros e passou mais da metade das noites da sua vida lendo com um lampiãozinho a querosene na cabeceira da cama. Aos 60 anos teve sua primeira experiência de trabalho remunerado como secretária da Produtora Accorde e lá ficou por mais de dez anos. Depois que se aposentou, preenche seus dias com leituras e quase não assiste TV, pois acha a programação muito chata. A Grace e eu lhe acompanhamos nas consultas e exames médicos e depois vamos tomar um café em alguma cafeteria da sua preferência.
Ela já não pode mais fazer o seu crochê e costurar, atividades em que era reconhecida pela sua habilidade. Adora as novidades tecnológicas e se exibir para as amigas. Quando vai cortar o cabelo no salão da Elis, conta que utiliza o Kindle para ler, que conversa com a assistente virtual Alexa e que acha muito prático o robô que limpa o piso, deixando todos surpresos com a sua familiaridade com as novas tecnologias. Não raramente ela comenta sobre a vida de alguém e, se questionada como que ela sabe, responde com um “li no Facebook”!
Antes da pandemia ela participava do Projeto Superidosos da PUCRS. Ao mesmo tempo que ela tem plena consciência da finitude da vida, tem uma incrível vontade de viver. Ela cobra do médico: “Doutor, eu não posso ficar assim, o senhor tem que fazer alguma coisa!”. O seu médico relatou que ela é um caso para a medicina estudar, pois não entende de onde aquele corpo tão debilitado retira forças para enfrentar tantas adversidades. A explicação que eu encontro é que “a sua cabeça segura o corpo”. Talvez o melhor dos medicamentos seja o amor e o carinho que recebe de todos. Desde a pessoa da portaria do hospital, técnicos do andar e as vizinhas de quarto, todos torcem muito pela sua recuperação. As meninas da enfermagem aprenderam com ela e sempre repetem o seu lema “velha tem que ser limpa, cheirosa e discreta”.
Nós repassamos as mensagens recebidas dos amigos e ela faz comentários ou pergunta algo sobre a pessoa. Agora que está com os braços muito doloridos para segurar um livro, eu leio para ela. Quando ela fecha os olhos pergunto se deseja dormir e então me diz que está escutando e imaginando as cenas. Eu pergunto isto porque conheço o seu mecanismo de defesa de, quando a conversa está chata, ela fecha os olhos e faz que está dormindo. Me sinto feliz em poder retribuir, pois ela leu muitos livros para mim quando eu era criança.
Embora não tenha dores fortes, os procedimentos hospitalares lhe machucam. Seus braços estão roxos de tantas picadas de seringa para retirada de sangue duas vezes ao dia e, como suas veias são de difícil acesso, são necessárias várias tentativas. Na retirada de sangue eu seguro em sua mão e sinto a dor dela no meu coração. Nos momentos em que ela esteve bem mal, eu me despedi e agradecia a graça que Deus me deu de ser seu filho. Ela estando aqui ou no céu, será sempre para mim o exemplo de vida. Um ser iluminado que espalha e que recebe muito amor.