Eu sei que vocês aí não me perguntaram, mas vou contar mesmo assim: eu trabalho no 11º andar de um prédio no bairro Petrópolis, e portanto, nesta época do ano, sou brindado na minha janela por alguns crepúsculos sensacionais, com aquela explosão caótica de cores que vão do amarelo ao rubro, lutando contra o avanço gradual do azul cobalto que vai tomando conta do céu à medida que a noite avança.
Toda vez que olho pela janela para encontrar essa cena de aquarela difusa, me lembro, ainda que involuntariamente, de Mario Quintana. Não me lembro de Quintana como pessoa, que eu não o conheci – aliás, ele morreu logo nos meus primeiros anos morando em Porto Alegre, e ainda me lembro de seu longo cortejo fúnebre subindo a rua Oscar Pereira, algo a que assisti pela janela da casa onde morava então minha colega Ana Esteves, e onde eu era sempre recebido com carinho e afeto pela mãe dela, dona Inez, sempre pronta a me alimentar com algum lanche que eu filava agradecido, uma vez que aqueles eram anos de dificuldade e fome.
Mas eu dizia que a vista da minha janela me lembra de Quintana, não o Quintana de carne e osso que outros como Juarez Fonseca ou Sergio Faraco conheceram. Essa visão do céu encenando um incêndio holográfico no horizonte me lembra na verdade de uma história vivida por Quintana, e contada mais de uma vez por ele próprio.
Quintana certa vez serviu de cicerone em Porto Alegre para o escritor Marques Rebelo, romancista no Rio e nome muito importante para a literatura da época, hoje bem menos lido e comentado – e provavelmente a obra mais conhecida do autor nos dias que correm seja mesmo A estrela sobe, talvez mais pela popularidade no imaginário coletivo da adaptação em filme, estrelada por Betty Faria. Bom, Rebelo estava em Porto Alegre. E Quintana conta, em uma pequena vinheta literária incluída na sua coletânea Caderno H (1973), que ele e Telmo Vergara, num certo entardecer de outono (ou seja, em dias menos abafados do que estes que andamos vivendo), levaram Rebelo “aos altos do Petrópolis” para que ele pudesse ver a maravilha que era o pôr-do-sol na cidade.
Aliás, curioso como, mais de 50 anos depois dessa história, Moacyr Scliar a recontou em uma de suas colunas para a Zero Hora, mas, provavelmente citando de memória, afirmou equivocadamente que Quintana havia levado Rebelo à Zona Sul. Talvez porque na Porto Alegre contemporânea, se você pensa em um passeio para além do Centro para ver o pôr-do-sol, você pensa em ir para a Zona Sul, talvez para poder aproveitar o crepúsculo junto ao Guaíba.
Bom, Quintana levou Rebelo para ver o crepúsculo no Petrópolis. Entusiasmado com a maravilha que via, passou a orientar o olhar do escritor carioca para as qualidades do pôr-do-sol na Capital dos gaúchos:
“Está vendo? As cores não se misturam, tudo parece recortado a tesourinha no horizonte. A paisagem de Porto Alegre é anterior ao Impressionismo“.
Embora provavelmente não tenha dito nada na hora e até é possível que tenha balançado a cabeça em silenciosa anuência (Quintana, sobre isso, resume assim a reação do outro: “Ele agachava-se, apertava, arregalava os olhos, concordava com tudo”), Marques Rebelo depois voltou ao Rio e escreveu em sua coluna de jornal que “como eles não têm o que mostrar, gabam os crepúsculos”.
Traição
O fato de que Quintana reproduziu a anedota em um texto para sua coluna Do caderno H. no Correio do Povo e depois selecionou-a para inclusão na seleção em livro do material prova que o episódio o marcou de algum modo. Talvez Quintana, sensível como um bom poeta, tenha se sentido um pouco atraiçoado. Talvez tenha simplesmente achado engraçado que um dos mais aclamados escritores de seu tempo no Brasil se recusasse firmemente a ver a beleza que ele via na cidade que amou e de onde poucas vezes saiu depois de se mudar para cá (algo, aliás, que eu entendia e compartilhava até uns oito anos atrás, mais ou menos, antes de Porto Alegre virar, política e socialmente, isso que está aí…).
De qualquer modo, penso que Quintana, no fundo, não há de ter gostado da tirada maldosa de seu colega. Entre outras coisas porque sim, Quintana provavelmente levou Rebelo para ver o pôr-do-sol porque realmente era apaixonado por ele, algo que toda a sua obra dá mostras.
Quintana é um autor com suas obsessões temáticas, e algumas delas se tornaram, lamento dizer, até mesmo um obstáculo na interpretação de sua obra, porque sua onipresença tende a criar uma falsa imagem do conjunto de seu trabalho: os jogos ternos de palavras; o mau humor gaiato que é muitas vezes tomado por meramente pueril; o lirismo aberto que é muitas vezes tido como sentimental; suas aventuras no mundo dos formatos como as quadras, os sonetos, as canções e até mesmo os epigramas, todos rotulados (erroneamente, claro) como ultrapassados após a explosão da forma produzida pelos modernistas de São Paulo.
Assim, muitas vezes o que se pensa da obra de Quintana é uma espécie de “máscara” construída pelo senso comum em vez daquilo que o poeta realmente escreveu ou produziu ao longo de uma obra de décadas. Mas sua relação com o pôr-do-sol, e especificamente com o pôr-do-sol visto em Porto Alegre, é um fato verificável.
Já em 1940, em Rua dos Cataventos, seu primeiro livro, uma coleção de sonetos, ele escreveria naquele numerado XI e escrito, como o poeta mesmo explica, “à maneira de Antônio Nobre”:
Nas minhas chagas vinhas pôr o dedo
E eu era o Triste, o Doido, o Pobrezinho!
Amava, à noite, as Luas de bruxedo,
Chamava o Pôr-do-sol de Meu Padrinho…
No mesmíssimo livro, no soneto número XXI, dedicado aos “amigos mortos”, Quintana cita quatro amigos e companheiros de noitadas que haviam partido, deixando-o só nas calçadas de Porto Alegre. Mas, arremata o poeta, ele ainda consegue sentir-se consolado pelo fato de que ainda pode sentir a presença deles na cidade, e por isso mesmo:
Não me constranjo de sentir-me alegre,
De amar a vida assim, por mais que ela nos minta…
E no meu romantismo vagabundo
Eu sei que nestes céus de Porto Alegre
É para nós que inda S. Pedro pinta
Os mais belos crepúsculos do mundo!...
Aliás, Telmo Vergara, o companheiro de Quintana no episódio de apresentar Rebelo ao crepúsculo porto-alegrense, foi um amigo a quem o poeta dedicou mais de um poema. Num deles, incluído em Apontamentos de História Sobrenatural, talvez num aceno à história que já havia contado antes no Caderno H., está lá o crepúsculo outra vez, no poema intitulado Para Telmo Vergara:
Era uma rua tão antiga, tão distante
que ainda tinha crepúsculos, a desgraçada…
Acheguei-me a ela com este velho coração palpitante
de quem tornasse a ver uma primeira namorada
A cidade moderna
No mesmo livro, aliás, há um poema chamado Cocktail Party, no qual um Quintana mais moderno e cínico do que o costume diz que se sente triste porque aqueles à sua volta “são burros e feios e não morrem nunca” (entendo, Quintana, entendo) enquanto enfileira algumas contradições e hipocrisias contemporâneas. Ao final, para demarcar a insatisfação do poeta com o teatro da vida moderna, o crepúsculo, a noite e as luzes da cidade não são retratados em harmonia, e sim fenômenos em oposição.
Desce o crepúsculo
E, quando a primeira estrelinha ia refletir-se em todas
as poças d’água,
Acenderam-se de súbito os postes de iluminação!
Essa oposição entre uma Porto Alegre que se modernizava e o céu bucólico que Quintana manteve na memória durante a vida toda também está em O passeio, poema incluído na coletânea Da preguiça como método de trabalho (1986):
… mas não vi o crepúsculo – onde aqueles crepúsculos de Porto Alegre, de uma beleza pungente até o grito?
Sim, cadê o crepúsculo?
– O gato comeu!
O gato se chama hoje arranha-céu, que aliás, ao que parece, ninguém mais chama desse jeito. Esvaziou-se o espanto.
Os arranha-céus que hoje campeiam obstaculizando a vista dos crepúsculos que Quintana amava tanto (inclusive aquele no qual eu trabalho, como comentei no início do texto) eram para o poeta quase inimigos pessoais, tantas vezes ele os despreza em sua obra. Para citar um único exemplo, vejamos Babel, poema de A vaca e o hipogrifo (1977):
Deus sabotou a construção da Torre de Babel simplesmente porque não gostava de espigões, ou arranha-céus, como poeticamente eram denominados em tempos que não vão longe. Hoje, basta o pejorativo de espigões para ver-se o quanto os abominamos – com exceção dos construtores –, estranho sinônimo dos demolidores da beleza e da comodidade do mundo.
Quem vive em Porto Alegre pode ver que, numa nota infeliz, o poema segue relevante quase 50 anos depois nesta Capital de Caramelos e do Cara Melo.
Cidade imaginada
Também é claro para quem lê Quintana que sua paixão não era só pelo pôr-do-sol como fenômeno natural estendido à sua frente, era também uma vontade de imaginar Porto Alegre como o cenário paradisíaco único dos crepúsculos mais belos do planeta:
A paisagem de Porto Alegre é anterior ao Impressionismo, relata ele ter dito a Rebelo, na narrativa do episódio feita em Caderno H.
O outono de azulejo e porcelana
Chegou! Minha janela é um céu aberto.
E esse estado de graça quotidiana
Ninguém o tem sob outros céus, decerto!
Gaba-se ele em Outono, poema incluído em Preparativos de viagem (1987). E ela já havia antes declarado seu amor pelo céu de Porto Alegre em Caderno H:
Ó céus de Porto Alegre, como farei para levar-vos para o Céu?
Logo, quando Quintana levou Rebelo para ver o pôr-do-sol nos altos de Petrópolis, provavelmente estava oferecendo aquilo que de melhor havia em Porto Alegre, em sua opinião – não importando, claro, o argumento lógico de que um crepúsculo sequer ocorre dentro dos limites da cidade. Quintana tinha sensibilidades que contrariavam a lógica, como muitos grandes poetas. E assim, entendo e até acho triste a desconexão que levaria Rebelo a voltar e expressar sua insatisfação numa tiradinha maldosa. Que pena que Quintana ofereceu tanto sem que houvesse um interlocutor disposto a aceitar.
Por outro lado, eu, particularmente, este ogro sem poesia jogado nesta quadra infeliz do século XXI, também não deixo de entender um pouco o lado do Rebelo. Caceta, meu considerado, despencar-se do Rio pra cá pra ver pôr-do-sol? Mas tu tá de sacanagem…
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Foto da Capa: Acervo do Autor