A declaração da ministra Anielle Franco, no dia 16 de janeiro recente, de que “iminentes tragédias” são “efeitos de Racismo Ambiental e climático”, gerou muitas publicações em diferentes mídias ridicularizando o termo “Racismo Ambiental”, como se esse conceito fosse algo absurdo, um desatino. Houve publicações inclusive de fotos do Rio Negro e do Rio Solimões lado a lado, com alusões ao Racismo Ambiental, induzindo as pessoas a pensarem que a manifestação da ministra sobre um problema tão grave no Brasil seria algo risível. Houve até quem na falta de melhores argumentos chamasse a ministra de petulante por ter usado o termo que, juridicamente e sociologicamente, vem sendo utilizado em estudos sobre o assunto nos Estados Unidos, no Brasil e em diversas universidades renomadas em vários países. Infelizmente a ignorância no Brasil é tão grave quanto o racismo, sendo um dos fatores que mais alimentam esse preconceito terrível e abjeto, tão forte no nosso país. Mais grave ainda, é a ridicularização do Racismo Ambiental por quem conhece o significado desse termo, pois essa negação visa diminuir um problema que salta aos olhos em cada esquina em que caminhamos nesse país tão excludente. Essa negação por quem sabe o significado do termo é uma atitude que reforça o racismo estrutural fortemente presente na sociedade brasileira.
Antes de entrar no tema principal desse artigo, que é o Racismo Ambiental, considero importante apresentar a explicação de racismo estrutural, publicada na página 466 da Revista de Artigos Científicos da EMERJ, v. 13, nº 1, 2001, Tomo I (A/J): “Em um conceito objetivo, racismo estrutural é um conjunto de práticas discriminatórias, institucionais, históricas, culturais dentro de uma sociedade que frequentemente privilegia algumas raças em detrimento de outras”.
Conforme expôs a Doutora Lays Helena Paes e Silva Dolivet, no seu texto Ambiente e justiça: sobre a utilidade do conceito de Racismo Ambiental no contexto brasileiro (leia aqui), o termo Racismo Ambiental foi utilizado pela primeira vez em uma pesquisa realizada em 1987 pela comissão de justiça racial da United Church Christ, nos Estados Unidos, que constatou que “a composição racial de uma comunidade é a variável mais apta a explicar a existência ou inexistência de depósitos de rejeitos perigosos de origem comercial em uma área.
Vale salientar que o texto, acima referido, destaca que os movimentos ambientalistas norte-americanos surgiram na década de 70 e 80, quando se tornou público o caso Love Canal, ocorrido na cidade de Búfalo, em 1978, que teve ampla repercussão e mobilização social quando uma chuvarada revelou para uma população de operários, predominantemente branca, que eles viviam sobre um canal utilizado para rejeito de resíduos tóxicos, sendo que para alguns autores o movimento da justiça ambiental começou, em 1982, quando moradores da comunidade afro-americana de Warren County (Carolina do Norte) ficaram cientes de que seria instalado na sua vizinhança um aterro contendo bifenilo-policlorado, e em consequência foram realizados diversos protestos com mais de quinhentas prisões. A partir deste caso foi realizado pelo congresso norte-americano, em 1983, um estudo que “a distribuição espacial dos depósitos de resíduos perigosos correspondia e acompanhava a distribuição das etnias pobres nos Estados Unidos”.
Assim, a autora acima referida define Racismo Ambiental como “o conjunto de ideias e práticas das sociedades e seus governos que aceitam a degradação ambiental e humana, com a justificativa da busca do desenvolvimento e com a naturalização implícita da inferioridade de determinados segmentos da população afetados – negros, índios, migrantes, extrativistas, pescadores, trabalhadores pobres, que sofrem os impactos negativos do crescimento económico e a quem é imputado o sacrifício em prol de um benefício para os demais.”
Em outras palavras o Racismo Ambiental descreve situações de injustiça social no meio ambiente em que vivem determinadas etnias. No Brasil, obviamente, as mais afetadas por esse tipo de racismo são as comunidades de afrodescendentes, indígenas e quilombolas, todavia outras etnias também são atingidas por esse crime hediondo.
Não precisa ser alguém com baixa renda ou com um nível alto de inteligência, nem haver uma pesquisa do Congresso Nacional para saber que no Brasil impera a falta de saneamento básico. Consequentemente, serviços fundamentais tais como saúde e educação tornam-se escassos principalmente nos locais onde vivem os mais pobres, e que são majoritariamente habitados por afrodescendentes e pardos. Os investimentos públicos em infraestrutura são predominantemente realizados nos bairros mais ricos ou em “locais vitrines” onde se concentram os turistas. O fato da classe média pagar mais impostos não justifica que as ruas dos seus bairros sejam asfaltadas, limpíssimas (não é o caso de Porto Alegre), que existam mais investimentos públicos em escolas e em infraestrutura em geral, em detrimento das regiões em que pessoas de baixa renda ou mesmo sem renda são obrigadas a morar. Em sua grande maioria, são locais que alagam, que podem desmoronar, que podem inundar, e sujeitas a contaminações, para que desse modo possam ficar mais perto dos locais de trabalho ou até mesmo de mendicância, como, por exemplo, acontece no Rio de Janeiro. Esse racismo estrutural e ambiental só aumenta as diferenças e reforça os papéis a que essas pessoas são destinadas, geralmente, e com honrosas distinções, de subalternos de quem recebe toda sorte de investimento privado e público.
No Brasil se usa muito o termo justiça ambiental, por ser mais amplo, englobar as dimensões social e ética da sustentabilidade e do desenvolvimento, mas o termo “Racismo Ambiental” também vem sendo empregado. Saliente-se que o primeiro seminário brasileiro sobre Racismo Ambiental ocorreu em 2005. Esse termo não é mais novidade para boa parte da imprensa, e muito menos para o mundo jurídico ou judiciário.
Importante destacar que, quando se fala em justiça ambiental, não está sendo referida uma justiça especializada no âmbito do poder judiciário, mas sim dos princípios que asseguram que um determinado grupo de pessoas, seja por razões de classe econômica ou racial não sofram de forma desproporcional os efeitos da degradação ambiental, da poluição em geral.
No artigo da semana passada sobre o Estado de Coisas Inconstitucional, mencionei que tramita no STF uma Arguição de Descumprimento Fundamental, na qual se busca o reconhecimento do estado de coisas inconstitucional quanto ao desmatamento ilegal da Floresta Amazônica, também conhecido como estado de coisas ecológico. A ministra Cármen Lúcia, relatora dessa arguição, inclusive já reconheceu que há o estado de coisas inconstitucional nesse caso. A contaminação das águas e das terras onde vivem os Yanomamis, por exemplo, é um caso claro de Racismo Ambiental, no qual a população indígena vem sendo dizimada por doenças e desnutrição em razão da destruição do meio ambiente por garimpos que destroem as matas e os animais que serviriam como caça ou pesca.
Espero que esse artigo tenha clarificado o conceito de “Racismo Ambiental”, e que os brasileiros, por mais que odeiem o atual governo, não ajam de forma maniqueísta ou polarizada. O racismo no Brasil é um problema muito sério, que envergonha a nós todos. Piadas, charges ou publicações tendentes a negar essa triste realidade não deveriam ser feitas. Um pouco de respeito e ética com as populações mais sofridas, é o mínimo que se espera de uma pessoa.
Que bom que a manifestação da ministra trouxe esse assunto para debate, isso pode ajudar que essa forma de racismo seja reconhecida, favorecendo o surgimento de ações indenizatórias propostas pelos prejudicados, de ações civis pública, e também de processos criminais contra os autores e participes desse crime hediondo que é o racismo.
Se você gostou deste artigo, sugiro ler os meu artigos:
- Quais condutas caracterizam os crimes de racismo ou injúria racial no Brasil? , publicado em 24 de outubro de 2022.
- O genocídio dos Yanomamis e a omissão dos agentes políticos, publicado em 30 de janeiro de 2023.
Foto da Capa: Agência Brasil