Em 2009, Rafael Guimaraens, jornalista, escritor e editor, que vem há duas décadas se dedicando a reconstituir episódios da crônica histórica de Porto Alegre, lançou pela Libretos, editora tocada em parceria por ele próprio e pela designer gráfica e editora Clô Barcellos, um livro precioso chamado A enchente de 1941. A essa altura, todo mundo meio que já ficou sabendo, imagino. A questão é que a circunstância de Rafael ser uma espécie de “biógrafo” da até então maior enchente registrada do Estado e hoje estar listado entre as milhões de pessoas que foram impactados materialmente pela nova enchente de 2024, a que assumiu orgulhosamente o novo pódio sinistro de maior desastre do gênero no Estado, gerou um bom número de matérias na mídia nas quais o escritor foi entrevistado, no G1, no Jornal do Comércio, na Folha, até no Jornal Nacional.
Então por que escolhi falar disso nesta coluna? Basicamente por dois motivos: primeiro, porque diferentemente da maioria das semanas em que escrevo a coluna, para esta aqui eu tinha um plano, mas o plano implicaria que eu tivesse preparado o texto com calma no mínimo ao longo de um mês, e bem, vocês viram como foi o mês passado, então, não, não rolou e eu precisava falar de outra coisa, e provavelmente nós ainda vamos passar anos falando dessa enchente, então não vejo por que não. O segundo motivo é que em todas essas matérias pediu-se ao autor que fizesse ali de improviso um paralelo entre o que ele narra em seu livro e o que rolou neste ano, mas o livro mesmo, a obra, se tornou um mero pretexto, o que acho um pouco injusto tanto pela qualidade de A Enchente de 1941 quanto pelo fato de que o livro está ganhando agora uma nova edição – duplamente necessária porque os exemplares da última reimpressão se perderam na enchente e porque a Libretos, como muitos outros atores do meio literário e editorial do Estado precisam de uma ajuda de seu público para se recuperar. E esta costumava ser uma coluna de livros às vezes, lembram? Então, por que não?
Eu mesmo não lia o livro há mais de uma década, desde quando foi publicado, e nesta releitura ocorreram algumas coisas muito interessantes. A principal delas foi ser relembrado do que considero um dos maiores méritos do livro: sua abrangência panorâmica. Sim, a obra fala da enchente, e a explica com uma prosa límpida, mas também resgata a cidade do período não apenas em seu aspecto material mas também em seu imaginário, na importância que aquele desastre até então insólito assumiria na crônica da cidade pelas décadas que viriam. Um pouco, aliás, como Rafael Guimaraens vem se especializando em fazer em outros livros.
A tragédia da Rua da Praia
Jornalista com décadas de profissão, Rafael Guimaraens havia já publicado no início do século XXI livros que de recuperavam aspectos específicos da história do Estado, mais vinculados à luta dos movimentos de esquerda no Estado, como Pôrto Alegre Agôsto 61 (2001) ou Trem de Volta, Teatro de Equipe (este, em coautoria com Mario de Almeida, em 2003). Mas penso que o ponto de virada no seu projeto de recuperação histórica local seja o sucesso Tragédia da Rua da Praia, de 2005, um livro que, em um tom que mescla o jornalístico com toques romanescos, de certo modo retoma o gênero do “romance-reportagem”, que foi muito popular na literatura brasileira dos anos 1970, para recontar uma história momentosa de crime e perseguição policial na Porto Alegre de 1911.
O episódio narrado no livro é real: no início de uma manhã de setembro de 1911, uma quadrilha formada por quatro homens estrangeiros assaltou uma casa de câmbio na Rua da Praia e, na tentativa atabalhoada e truculenta de render o funcionário que estava no local, o alvejaram com um tiro (o homem morreria dois dias depois). A partir daí, seguiram-se 24 horas de perseguição aos quatro homens que tentavam fugir em episódios que só não são dignos de figurar numa comédia pastelão porque suas consequências foram bem reais: partiram em um coche roubado na frente do Mercado Público, bateram noutra carroça na Voluntários, o cavalo morreu, tentaram sequestrar um bonde, foram ludibriados pelo motorneiro que cortou a corrente do veículo, roubaram o veículo de um leiteiro que seguia o bando por pura curiosidade imprudente, foram até Gravataí, se esconderam mata adentro, etc. etc. A caçada terminaria só na manhã seguinte quando a polícia encontrou os quatro homens e os fuzilou e depois desfilou pela cidade com seus corpos, em triunfo.
Até hoje esse livro em particular já teve umas três reedições, foi adaptado para quadrinhos com o traço de Edgar Vasques e estabeleceu uma espécie de carta de intenções na obra de Rafael Guimaraens, com seus livros com uma cruza muito particular entre reportagem aprofundada e ficção histórica. Tragédia da Rua da Praia trata da irrupção de violência numa cidade então pacata, mas não deixa de, como é característico do autor, seguir as implicações sociais da narrativa que conta. Está lá o então nascente fascínio pelo apelo sensacionalista do caso (a população seguiu até onde os trabalhos de busca estavam sendo realizados como para um curioso piquenique, e a imprensa do período se esbaldou. Também aborda-se no livro o fato de que aquela violência trazida por “elementos estrangeiros” (eram russos) ocorria em uma cidade sob o tacão de um governo autocrático, o de Borges de Medeiros, e como aquele assalto em particular viria a ter repercussões inclusive nas decisões tomadas pela polícia no período.
O Crime da Lagoa, o tradutor e outros livros
Guimaraens seguiu ainda com a vertente que havia sido a tônica de seus primeiros trabalhos em livros como Abaixo a Repressão – Movimento Estudantil e as Liberdades Democráticas (escrito com Ivanir Bortot, em 2008), Teatro de Arena: Palco de Resistência (2009), mas voltaria à história mais ampla da cidade em A Enchente de 1941. Depois, retomaria os moldes de Tragédia da Rua da Praia em A Dama da Lagoa, que reconstitui um crime rumoroso da crônica policial porto-alegrense nos anos 1940: a morte da adolescente de origem alemã Maria Luiza Häussler que, depois de sair de um baile na tradicional Sociedade Germânia acompanhada do namorado, o também jovem “alemão” Heinz Werner Schmeling, só seria encontrada dias depois submersa na Lagoa dos Barros. O namorado foi automaticamente considerado suspeito, após aparecer em um bar do bairro Belém Velho com um tiro no braço.. O impacto do crime passional envolvendo dois jovens da rica comunidade alemã da cidade ganharia as manchetes por anos. Schmeling, mesmo sempre tendo negado o crime, foi condenado pelo homicídio dois anos depois.
É um livro no qual o tom romanesco da narrativa ajuda Guimaraens a driblar habilmente a maior dificuldade da sua empreitada: a impossibilidade de reconstituir com precisão o que aconteceu entre a saída do baile e a morte da jovem. Como se baseia nos documentos do caso e em notícias dos jornais da época, Guimaraens constrói a narrativa por meio de personagens secundários, e mantém no romance a incerteza que sempre pairou sobre o caso – o rapaz alega que a namorada havia se matado depois de ter atirado nele, e que ele teria ocultado o cadáver na Lagoa por medo de que ninguém acreditasse em sua versão.
A afinidade do autor com o passado de Porto Alegre se solidificou com cada livro posterior: O Espião que Aprendeu a Ler, de 2019, faz o relato sobre a passagem por Porto Alegre daquele que viria a se tornar o maior embaixador da literatura brasileira na Alemanha: Hans Curt Meyer-Clason (1910-2012), que, na idade madura, traduziu para o alemão, entre outros, Jorge Amado, João Cabral de Melo Neto e, sua maior façanha, a elogiada versão de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Mas, na juventude, Meyer-Clason morou no Brasil durante a II Guerra – inclusive em Porto Alegre, onde foi preso pela força-tarefa policial chefiada por Plínio Brasil Milano, acusado de, sob a fachada de simples representante comercial, integrar uma rede de espionagem para os nazistas.
Em outro romance recente, 1935, Rafael Guimaraens reconstitui um ano chave para a história da capital: aquele no qual se comemoraria o centenário da Revolução Farroupilha – e portanto, aquele no qual o governador do Estado, Flores da Cunha, a essa altura já buscando se afastar do seu amigo e companheiro de revolução de 30 Getúlio Vargas, precisava mostrar-se como um administrador impecável. O resultado disso foi um garrote poucas vezes visto sobre movimentos sindicais e operários, alvos de uma brutal repressão policial reconstituída vividamente no romance.
Porto Alegre em 41
Como se vê, com a exceção mais remota de Tragédia da Rua da Praia, esses livros tangenciam praticamente o mesmo período na história da Capital: a faixa entre os anos 1920 e os 1940 – sendo, a seu modo e em seu conjunto, uma história fragmentada do processo de um dos períodos de maior e mais acelerada urbanização e expansão da Capital, algo sempre presente no horizonte de todos esses livros. E é justamente nesse recorte que se situa também o maior trauma daquela geração de porto-alegrenses, a enchente de 41, que Guimaraens também transformaria em livro.
Enchentes nunca foram um fenômeno incomum em uma cidade situada tão próxima a um grande estuário – e que ainda “recebe as águas de quatro rios extensos e caudalosos: Jacuí, Caí, Gravataí e Sinos”, como escreve Rafael Guimaraens em A Enchente de 41. Pelo que documenta o livro, durante boa parte de sua história, a cidade sofreu uma enchente por década (a primeira ocasião registrada foi em 1824, como consta em uma ata da Câmara Municipal). Mas há uma diferença importante tanto para a enchente de 41 quanto para a de agora:
“Salvo raríssimas exceções, elas se sucedem em setembro e outubro, meses de grande precipitação. Por isso, receberam o nome de ‘enchentes de São Miguel’, o arcanjo guerreiro que enfrentou Lúcifer e os anjos rebeldes em defesa da autoridade de Deus, cujo dia de devoção é 29 de setembro”.
Assim como a que vivemos agora, a grande enchente, aquela que ficou 83 anos no imaginário da Capital, ocorreu entre abril e maio.
A enchente de 1941 é dividido em três partes. A primeira traça um panorama da cidade na época, desde estatísticas sociais ao que passava no cinema durante aquelas semanas anteriores ao desastre. A segunda, narra os percalços da enchente. A terceira se dedica a uma das consequências da cheia: o muro da Mauá, para muitos até hoje inacreditavelmente polêmico, tanto que ouvi um grande luminar da imprensa local esses tempos defender que ainda se deveria discutir sua derrubada mesmo depois do que se viu agora.
A primeira parte brilha pela forma como recria a ambientação do período:
“Porto Alegre possuía, então, 272 mil habitantes contados pelo Censo de 1940, o primeiro realizado pelo recém-criado Instituto Nacional de Estatísticas, embrião do futuro IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Eles moravam em 50 mil residências, das quais 29 mil eram de madeira. Quase 60 mil porto-alegrenses acima de 10 anos – um terço da população – não sabiam ler, um dado vergonhoso, mas bem inferior ao índice nacional de analfabetismo: 55% entre os 41 milhões de brasileiros. Embora historicamente a cidade tivesse vocação para o comércio, a indústria ocupava mais mão-de-obra: 24 mil operários trabalhavam nas 675 fábricas. As principais mostravam nomes alemães em suas fachadas, como Renner, Wallig, Gerdau, Neugebauer, Bier e Bopp. Nas 2.104 casas comerciais trabalhavam quase 20 mil pessoas. A administração pública empregava menos de 8 mil funcionários, um pouco mais do que o pessoal envolvido nas áreas de segurança – Exército, Brigada Militar e Polícia Civil –, cerca de 6 mil. Os profissionais liberais não chegavam a 3 mil, entre advogados, médicos, dentistas e contadores, principalmente”., escreve Guimaraens.
Algumas diferenças já saltam à vista de cara: hoje a cidade tem cerca de 1,3 milhão de habitantes e um índice de escolaridade na infância de 96%. Alguns nomes citados continuam sendo associados à elite empresarial do Estado. Mesmo com um índice tão alto de pessoas sem saber ler, a literatura do período florescia. Foi naquele ano que Mario Quintana publicou Rua dos Cataventos, seu primeiro livro. A Editora Globo era o centro da vida cultural e uma editora de grande relevância nacional. Como cita Guimaraens:
“o pacote de lançamentos daquele ano incluía (…) Romance antigo, de Darcy Azambuja; Um clarão rasgou o céu, de De Souza Junior; Uma jangada para Ulisses, de Vianna Moog; Menininha, de Athos Damasceno Ferreira, todos escritores gaúchos, e mais preciosidades como O admirável mundo novo, de Aldous Huxley; Eu, Claudius, Imperador, de Robert Graves; As vinhas da ira, de John Steinbeck; A importância de viver, de Lin Yutang, e Jean Christophe, de Romain Rolland”.
A enchente
Mas, como o livro bem documenta, nem tudo era maravilha na relação da cidade com as água do Guaíba. Embora A Enchente de 1941 seja, diferentemente, por exemplo, de A Dama da Lagoa, um livro com um formato eminentemente jornalístico, sem incursões pontuais pelo romanesco, há uma tentativa de narrar os acontecimentos de forma ordenada como em um romance, ou como uma reportagem do chamado jornalismo literário, outro diálogo possível da obra (é impactante a descrição da agonia da primeira vítima fatal da enchente, um anônimo funcionário dos serviços de limpeza pública que morreu não afogado ou em consequência das doenças que grassaram após a subida das águas, mas de “congestão cerebral – mais tarde conhecida como Acidente Vascular Cerebral (AVC), normalmente associado ao estresse” – algo que ressoa de modo amplificado em um Estado que viu mesmo mais de um caso de voluntários de outros Estados que haviam se mobilizado de modo generoso para ajudar os ilhados pelas águas e terminaram morrendo em meio aos resgates.
A mesma enumeração precisa, fruto de uma pesquisa aprofundada, é usada para mostrar o gradativo avanço das águas pela cidade. A ordem em que as ruas foram alagadas, ou que as repartições e serviços públicos foram sendo paralisados pela inundação. Lembrando sempre que, como Guimaraens descreve na primeira parte do livro, a cidade era outra, mais centralizada, não tinha as comunicações em rede disponíveis hoje (o veículo essencial do período foi o rádio) e a maior parte de sua vida pública, política e administrativa ocorria no centro e nos arredores próximos.
Outro tópico que de certo modo desperta gatilhos em seus leitores é o fato de que Porto Alegre (e suas autoridades municipais) demorou a acordar para o perigo que batia à porta quando parte do Estado já estava debaixo d’água:
“A chuva já durava 20 dias. No interior do Estado, já se verificavam alagamentos em Santa Maria, Carazinho, Gravataí, Arroio do Meio, São Jerônimo, Novo Hamburgo, São Sebastião do Caí e Santo Antônio da Patrulha. A lavoura de arroz estava seriamente prejudicada. Em Porto Alegre, temporais quase diários castigavam a população por mais de uma semana. As autoridades permaneciam mergulhadas numa inércia, como se só restasse esperar que a força da natureza finalmente se acomodasse.”
Não é meu papel aqui recontar o livro inteiro. Deixo esse prazer para vocês, já que uma nova edição está a caminho e o autor tem, inclusive, pelo que sei, uma sessão de autógrafos marcada em um dos eventos que estão se estruturando para ajudar o mercado livreiro local, uma feira que o Instituto Ling deve sediar entre 14 e 16 deste mês.
Só quis compartilhar um pouco uma impressão indelével, a estranheza de reler o livro hoje. Em seu lançamento, há 15 anos, A enchente de 1941 era a reconstituição minuciosa de um evento tão distante que tinha na opinião pública ares de lenda. Hoje, é um pouco como ver a cidade pela milésima vez em algum filme caseiro mal gravado. Tanto mudou. E tanto é o mesmo.
PS: Falei na semana passada sobre iniciativas que tentavam amealhar recursos para ajudar o combalido mercado livreiro local. Cito aqui algumas, de memória:
* No calor (ou melhor, no frio molhado) da hora, Alexandre Brito, Celso Gutfreind e Dilan Camargo criaram uma antologia com poemas de 59 poetas sobre a catástrofe, chamada “Sob as águas, sobre a esperança”. Edição em ebook da Bestiário, distribuição digital gratuita. A ideia é que seja distribuído para administrações de abrigos ou que qualquer possa, se quiser, baixar uma cópia e talvez ler para alguém que anda precisando de um pouco de poesia depois do horror. (Pode ser baixado aqui)
* A AVEC reuniu um volume com contos de seus autores chamado Contos pelo Rio Grande, com venda revertida para as vítimas das enchentes. Inclui nomes como Nikelen Witter, Christopher Karstensmidt, Fábio Fernandes, entre outros. Link Aqui.
* De 14 a 16 de junho, como eu já disse, o Instituto Ling vai promover a Feira Reconstrói RS, evento solidário com estandes de editoras afetadas, palestras, encontros literários etc. Informações aqui.
* A escritora Simone Saueressig lançou uma versão impressa de um conto premiado dela chamado 6 2, cujos direitos autorais serão revertidos para o MARGS – e o MARGS, por sua vez, já anunciou que vai direcionar valores para outros museus atingidos pelas cheias. Vendas por esse link.
Foto da Capa: Reprodução parcial da capa do livro A Enchente de 41.
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