Desculpem começar uma coluna sobre literatura falando de um seriado da Marvel, mas prometo que vai fazer sentido. Recentemente andou circulando por toda parte o trailer para uma nova série de super-heróis protagonizada pela prima do Hulk, que também se torna gigante e verde, mas que, por ter sido exposta a uma quantidade diluída da radiação que o transformou, mantém a própria personalidade intacta, embora seja menos poderosa que o primo. A certa altura, Bruce Banner, o Hulk original, está orientando a parente sobre os paranauês de ser um monstro verde e diz o seguinte:
– Suas transformações são provocadas por medo e raiva.
Ao que a astuta advogada/heroína responde:
– Essas são, tipo, meio que as bases da existência de qualquer mulher.
Esse diálogo é um achado. Como costuma acontecer com essas fantasias desnutridas do material mais recente do Universo Marvel, é possível que a produção tenha tropeçado por acidente num conceito que, se usado do jeito certo, poderia ser MUITO interessante. Mas que a série provavelmente vai resumir a essa única fala em tom de piadinha e deixar pra lá.
A questão é que esse diálogo de literalmente seis segundos faz uma conexão gigantesca, ainda que inadvertida, com a obra recente de um bom número de autoras latino-americanas recentes que, cientes de que a existência de uma mulher transita de modo constante entre o absurdo e o horror, decidiram trazer para suas histórias elementos da literatura de gêneros de massa, do fantástico ao gótico, do policial ao sobrenatural, como forma de comunicar uma verdade profunda sobre a experiência feminina em um mundo que agride, intimida e mata mulheres. São autoras que, encontrando o mote, não desistem dele por covardias e conveniências.
É algo que pode ser visto, em maior ou menor escala e cada qual a seu modo, em lançamentos recentes disponíveis no Brasil e que montam um rico panorama continental: Rinha de Galos, da equatoriana María Fernanda Ampuero (editora Moinhos), Temporada de Furacões, da mexicana Fernanda Melchor (editora Mundaréu) Não Aceite Caramelos de Estranhos, da chilena Andrea Jeftanovic (Mundaréu) e Gosma Rosa, da uruguaia radicada na Colômbia Fernanda Trias (Moinhos). Também podem ser juntados à lista exemplares lançados há um pouco mais de tempo por aqui, como Garotas Mortas, de Selva Almada (Todavia), As Coisas que Perdemos no Fogo (Intrínseca), de Mariana Enriquez, e o díptico reunindo Pássaros na Boca e Sete Casas Vazias (Fósforo), de Samantha Schweblin, argentinas todas elas.
BRUTALIDADE
Há outra coisa em comum entre todos esses livros, além do fato de serem obras escritas por autoras latino-americanas de língua espanhola. São, todos eles, poderosos, brutais, espraiando-se numa gama de estilos que vão do realismo seco e quase telegráfico a um certo lirismo duro e sutil. São histórias nas quais as autoras não dispensam imagens, mas passam muito bem sem eufemismos. Outro elemento que serve como selo de destaque é a forma aberta como abraçam a longa e profícua tradição fantástica da literatura latino-americana e não rejeitam o cruzamento com gêneros literários preconceituosamente considerados “menores”. Dentro de um espectro colorido e nuançado de vozes e estilos que vão do cru ao lírico, os textos destas escritoras também fogem de uma moda corrente na literatura contemporânea (e aparentemente muito bem sucedida no aspecto comercial), a da escrita poética elíptica que muitas vezes se torna indistinguível de uma postagem de Instagram.
As Coisas que Perdemos no Fogo, de Mariana Enriquez, por exemplo, é, sob vários aspectos, um livro de fantasmas. Não os espectros torturados da narrativa gótica tradicional (embora um dos contos apresente o protagonista sendo assombrado pelo fantasma de um serial killer que de fato existiu), mas os espectros subjacentes a uma nação de terceiro mundo com uma história arraigada de violência. Num dos melhores contos do volume, “Hospedaria”, duas garotas tramam um trote contra a dona de uma pensão localizada em um antigo centro de tortura da ditadura argentina, e descobrem que o lugar, numa imagem do país todo, continua assombrado pelos horrores praticados entre aquelas paredes. A linguagem é segura, toureando e evitando o clichê do horror fantástico por meio de um uso criativo da primeira pessoa.
Fernanda Trias, em Gosma Rosa, apresenta uma abordagem peculiar para um tropo cada vez mais presente na ficção destes tempos de degradação social e institucional: a distopia. Em uma Montevidéu vaga que nunca é chamada pelo próprio nome, assolada por uma praga de proporções apocalípticas, a protagonista é afetada tanto por dentro quanto por fora pela acelerada ruína de laços e referências e pela impressão de que o próprio mundo se voltou contra os sofridos sobreviventes. O ar, o mar e a vegetação se tornaram tóxicos, talvez devido à contaminação das algas, e de tempos em tempos um vento ácido de coloração avermelhada se espalha como uma névoa de morte. Enquanto a peste grassa, a personagem vê suas poucas relações pessoais (com o ex-marido, com a mãe, com um menino doente que acolheu) minguando como a saúde dos infectados.
EXTREMOS
Rinha de Galos, de María Fernanda Ampuero, talvez seja a desse conjunto reunido arbitrariamente pelas leituras recentes deste colunista a que mais leva aos extremos a aposta no choque como um elemento de desestabilização do leitor e de revelação da grotesca brutalidade subjacente a todas as relações no Equador – e, portanto, nesta América Latina de agruras bastante similares. A linguagem é mais crua e mais direta. Alguns contos, como “Paixão”, encontram sua forma na inversão inteligente de uma história mil vezes contada, mas de modo geral há a tensão provocada pelo atrito entre a linguagem econômica, reta e concreta, sem artifícios e quase sem adjetivos, e o grotesco das situações narradas, como no conto de abertura, Leilão, ou em “Monstros”, em que duas meninas obcecadas por filmes de terror descobrem que o verdadeiro horror pode ser a sua própria “família de bem” patriarcal. A descoberta de sexualidade também é retratada como a entrada em um território limítrofe de danação e risco, menos pela coisa em si e mais pelas expectativas e relações sociais. Algo também presente em contos de Não Aceite Caramelos de Estranhos, incluindo a polêmica história de abertura “Árvore Genealógica”.
O conto, aliás, é a forma predominante na maioria desses livros, talvez por ser aquela em que se casam com mais propriedade a linguagem sem adornos e a busca por um efeito imediato de choque e desconcerto, inevitavelmente diluído em uma narrativa longa. As narrativas curtas de Samantha Schweblin, por exemplo, tiram muito de sua força do fantástico no sentido mesmo dado pelo linguista búlgaro Tzvetan Todorov: a erupção de um elemento incomum ou de uma situação fora do comum que rasga a normalidade e instala uma atmosfera de insólito, algo para o que contribui a brevidade e a segurança sóbria de sua linguagem.
VIOLÊNCIA E SUBMUNDO
Mas não é impossível que tal impacto estético também venha numa obra extensa, como o romance Temporada de Furacões, de Fernanda Melchor, no qual uma trama sobre violência e feminicídio tem início com a descoberta do cadáver de uma mulher reverenciada e temida como uma bruxa em um pequeno povoado. O gênero de massa que dá ao livro sua forma enganosa aqui é o policial, já que as investigações, suspeitas, pistas falsas e inocentes potencialmente acusados também fazem parte da trama, mas essa pátina de thriller genérico é logo afastada pela construção cuidadosa do livro, em que diferentes pontos de vista se cruzam para `as vezes esclarecer e às vezes para confundir o mistério, em um procedimento mais aparentado com Twin Peaks do que com Sherlock Holmes.
Como convém ao tema e à forma, em Temporada de Furacões a brutalidade é usada com parcimônia para provocar menos choque e mais uma melancolia desencantada à qual não falta a documentação honesta de um intrincado labirinto de mazelas sociais. Algo que também se vê em um livro inusitado nesta lista por se afastar abertamente da ficção: Garotas Mortas, de Selva Almada. Obcecada por três homicídios não solucionados e aparentemente sem relação no momento em que a Argentina retomava a democracia, nos anos 1980, a autora tenta reconstituir a verdade dessas três vítimas apagadas entre uma multidão de outras. É pessoal, epidérmico, a Selva é também seu próprio personagem – aliás, abrindo uma discussão que fica pra outro dia sobre o quanto um autor de não ficção recuperando a história de terceiros tem o direito de misturar tanto sua própria história na narrativa. Spoiler da opinião deste leitor: depende. Neste caso, funcionou, aparentando a minúcia da investigação à agudeza do ensaio. Mas não é sempre que acontece.
No Brasil, a autora contemporânea que mais tem enveredado por um caminho semelhante, embora não com as mesmas intenções, talvez seja Ana Paula Maia e seu universo particular distópico de proletários de um apocalipse difuso em livros como Entre Rinhas de Cachorros e Porcos Abatidos, Carvão Animal e Enterre seus Mortos. Mas ela se desvia deste conjunto por escrever pelo ponto de vista de um personagem masculino, cuja dívida com o mestre do horror Edgar Allan Poe é evidente no nome: Edgar Wilson. Essa mera escolha já muda o enquadramento o bastante para afastá-la da tendência aqui identificada. Vale mais mencionar, ainda que de passagem, o universo gótico sem concessões dos contos de Alfonso e Eu, em que Lízia Pessim Adam, autora gaúcha precocemente falecida e pouco conhecida hoje em dia, investia no grotesco para retratar as angústias de personagens cuja sexualidade desviante os condenava ao submundo.
No momento em que o horror se banalizou, e a truculência de uma masculinidade tóxica decaída e reacionária se tornou não apenas norma como ensaio de programa de governo em alguns países (sabe-se lá quais, não é mesmo?), não há consenso para as reações possíveis. Muita gente ainda se refugia no mote de O Idiota, de Dostoiévski: “a beleza salvará o mundo”. Até pode ser. Mas os livros desta seleção provam que a beleza também nasce do grotesco.
E que de modo algum é estranha à raiva e ao medo.