Da janela da aeronave, o pôr do sol. Cores em camadas que lembram uma sobremesa antiga. Uma taça de Montanha Russa, gelatina e creme em camadas, um Rei Alberto. Uma faixa em rubro lembra fogo, sangue, paixão.
Assoma a lembrança do trecho inicial de um texto. Enviou-me a Cidinha Madeiro, médica, artista visual, entusiasta da cultura, uma amiga-irmã alagoana que tenho. “Então, isto é a vida: esta faixa rajada de vermelho que encerra o dia? Este resto de arco-íris depois da chuva mansa? A aragem embalando as folhas que se desprendem das árvores nas calmas manhãs de sol? E o homem a que responde a tudo isto? Deixa-se em contemplação? Mede-se o seu espanto pela alegria ou pelo medo? O que é o medo? Algo que não se pode medir? Um ponto escuro em que os olhos se fecham para que nada se veja? A morte?”
Assim principia a última crônica do Sergio Napp. Um verdadeiro escritor questiona até quando ensaia um epílogo. Natural de Giruá – RS, ele nasceu em 3 de julho de 1939, faleceu em Porto Alegre no dia 29 de maio de 2015. Engenheiro de formação, tornou-se mestre em literatura. Legou-nos obras de ficção, romances, poesia, histórias infanto-juvenis. Participou da época vibrante dos festivais nativistas, tornou-se um clássico no cancioneiro regional gaúcho. Autor de Canto Livre, em parceria com Fernando Cardoso e Jair Kobe, que deu origem ao grupo vocal homônimo. Bem antes, na década de 1960, teve gravadas ‘Meus Olhos’, por Elis Regina, ‘Pequeno Sol’, por Hebe Camargo, e ‘Tempo de Partir’, por Clara Nunes e Walter Matesco.
Desgarrados, a canção que fez com Mário Barbará, bastaria para torná-lo imortal.
Num de nossos encontros, ele elogiou um conto meu, Olhos de guia. Disse que gostaria de ter criado o personagem do guri que conduz Garibaldi no caminho para o mar, na epopeia farroupilha dos barcos sobre a terra. Ele me desconcertou. Como alguém que escreveu aqueles versos, que fazem com que todos nos encontremos “no cais do porto pelas calçadas”, que nos sintamos dentre os que “faziam planos e nem sabiam que eram felizes”, e ensina que “olhos abertos o longe é perto o que vale é o sonho”, poderia cobiçar uma linha sequer de um texto qualquer? Aquele comentário generoso foi um prêmio e dá a dimensão de sua grandeza.
Em paralelo a tantas produções, Sergio Napp também se dedicou ao projeto da Casa de Cultura Mario Quintana. Assumiu a sua direção, participou da restauração do Hotel Majestic – onde Quintana havia morado – e que hoje é sede de um dos equipamentos culturais mais emblemáticos do Estado.
Foi no antigo saguão do Majestic que nos despedimos do Napp. Abraçados por suas canções, entre essas Desgarrados, como ele disse que gostaria. Na voz do Vitor Hugo, do Jair Kobe, da Elaine Geissler, do Canto Livre e de quem mais lá esteve. Nenhum discurso ou oração teria sido melhor tributo.
Décadas passam. Dentro do avião, o espetáculo proporcionado pelo ocaso, que vejo através da abertura emoldurada, impõe lembranças. Talvez um pouco de melancolia: “o que foi nunca mais será”. Outonos ensejam crepúsculos. Mas, também, matizes de cores vibrantes que fazem pensar na beleza dos dias. Ao desembarcar de volta a Porto Alegre, “sopram ventos desgarrados carregados de saudade”.
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Foto da Capa: Acervo do Autor.