Nem tudo o que aprendi com a psicanálise estendo para todos os campos da vida. Gosto de pensar que não há nada mais antipsicanalítico e antifreudiano do que obstinar-se na crença de que a psicanálise é uma razão superior às demais.
Em consequência, me parece empobrecedor não poder interrogar essa disciplina desde dentro. Por mais apreço que ela desperte, não faz sentido endossar e poupar a psicanálise das tensões de nosso tempo. Inclusive, não sem idealismo, creio que não há homenagem mais digna e respeitosa que submetê-la às provas desse mesmo tempo.
Nessa linha, é com alegria que vejo o quanto a psicanálise vem aprendendo coisas fundamentais com o mundo do qual também é cocriadora. É bom que isto esteja assim, pois, desse modo, podemos apostar em uma reciclagem profícua de noções e conceitos que já não vão mais subestimar o tempo em que vivemos. É assim que as teorias sobre raça, gênero e sexualidade já não deveriam ser apêndices incômodos ao campo, mas tomadas como saberes fundamentais. Nessa mesma toada, uma boa parcela do campo psi já entendeu que negligenciar a política é não olhar a própria cultura na qual este mesmo campo está inserido.
Uma tecla da qual gosto bastante é a lembrança de que Freud revisou sua teoria das pulsões em função da Primeira Grande Guerra. Quer dizer, por conta dos combatentes egressos que, com os seus sonhos terroríficos e repetitivos, já não poderiam confirmar a teoria freudiana de que o sonho seria uma realização de desejo. A partir daí, fica difícil entender o psiquismo do animal humano como puro e completamente isento de seu lugar político, de seu lugar de poder.
Então, quer se trate da política de Estado ou da dimensão que entende o lugar social, percebe-se entre analistas um incremento de uma disposição a enfrentar temas espinhosos, como o racismo. Ainda assim, há sutilezas que mereceriam ainda maior atenção. Não só a psicanálise, mas a psicologia, e a saúde mental como um todo, vêm subestimando o poder de comoção hipnótica letal que determinados líderes têm com o auxílio de suas suas fake news. A emissão sistemática de notícias falsas deveria ser tomada como um problema de saúde pública, assim como o cigarro, a bebida etc. A depender da “notícia” se desencadeia um efeito deletério, uma vertigem que provoca falha no discernimento, agressividade e exposição à riscos.
Letal pode aqui soar dramático quando se esquece que, por seguir ao líder, muitos sucumbem a comandos de destruição e autodestruição, atuando como máquinas para as quais uma convicção serve como o botão que aciona os repertórios mais violentos e escabrosos. Muitos destes advindos das senhorinhas mais pacatas. Explico melhor: uma convicção bem manipulada, um valor social, pode ser o gatilho emocional que tapa e apaga todo e qualquer pensamento que mantenha a dignidade desse nome.
Como exemplo, uma convicção bastante vendável é a liberdade. Lacan chamava a esse engodo de “delírio de autonomia”, um alicerce bem comum nas neuroses ainda em nosso tempo. A liberdade é, portanto, sempre relativa, mas vendida em cada objeto de consumo que, no final, termina esquivando o cumprimento dessa promessa. Afinal, quem conseguiria sustentar uma liberdade absoluta, completamente sem amarras em um mundo de escravização consumista?
Apesar disso, o caricato presidente argentino – ou o “novo presidente”, segundo seus adeptos mais tímidos – , tem exercido com mestria uma comoção com o seu bordão: Viva la libertad, carajo! Há quem compre. Sempre há!
A liberdade está à venda a toda hora, lugar e com muitas embalagens diferentes. O que faz falta mesmo no mercado é um pouco de incredulidade sadia, boas razões para duvidar.