A cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de 2024 foi um alerta carregado de mensagens explícitas e subliminares. Para além do espetáculo de luzes e performances, foi um poderoso manifesto sobre as questões sociais e políticas que permeiam a sociedade contemporânea. Em meio à grandiosidade do evento, emergiu uma mensagem clara de inclusão, diversidade e luta contra as injustiças.
Pessoalmente, vejo cada Olimpíada com os olhos de uma menininha preta, magrinha e desmilinguida, que em décadas passadas sonhava em estar em uma competição de grande porte. Eu corria. Era veloz. Nas competições da escola, uma instituição pública na periferia de Porto Alegre, eu chamei a atenção da professora de Educação Física. Eu fazia 100 metros rasos em menos de 20 segundos. Sem treinamento, sem calçados especiais, do nada… a profe dava o sinal e eu saía em disparada. Meu recorde foi 16,55. Ok, muito longe dos incríveis 10,49 segundos, recorde feminino da norte-americana Florence Griffith Joyner, de 1988. Mas na tenra idade de 10 anos, meus pequenos feitos eram suficientes para sonhar muito. No entanto, no Brasil, os sonhos não são acompanhados de apoio nem de incentivos. É preciso sorte, estar no lugar certo na hora certa, talvez encontrar algum anjo da guarda. Nossas escolas, em sua maioria, não têm estrutura nem apoios para incentivar o surgimento de atletas.
Talvez por isso, a cada abertura dos Jogos, eu me emociono. Não vejo a breguice, não vejo os erros, não me importo com a longa duração do espetáculo. De certa maneira, me vejo ali, com os atletas que, mesmo que voltem para casa sem as medalhas desejadas, já conquistaram muito, já realizaram algum sonho.
Estou morando na França, mas não participo dos jogos. Sou uma espectadora atenta, emocionada. Esta cerimônia, realizada logo após as eleições francesas, trouxe um alerta para um mundo que vê o avanço da extrema direita alavancado pela insatisfação geral e veio carregada de mensagens explícitas e subliminares.
O que se viu não foi somente um espetáculo referências à história e à cultura da França, mas também um recado sobre a diversidade e os desafios contemporâneos. Difícil não observar a delegação francesa, composta por muitos atletas de origem africana e outras minorias, sem relacioná-la às mudanças demográficas e sociais do país. Há sinais visíveis nas ruas, na economia e no cotidiano de todo o país, gerando desconforto e agravamento tanto do racismo como da xenofobia.
Arte, cultura e ativismo social foram bem dosados pelo diretor Thomas Joly, um dos mais respeitados diretores de teatro da França, que, sim, usou megaícones como Lady Gaga e Céline Dion, mas também mostrou ao mundo performances de muitos artistas negros importantes no cenário europeu, como o rapper belga Stromae, conhecido por suas letras que abordam questões sociais, e Angélique Kidjo, a cantora beninense que é uma voz poderosa em defesa dos direitos humanos e da diversidade cultural. As apresentações foram marcadas por coreografias que representavam a promoção da igualdade e a luta contra a discriminação.
A cerimônia também prestou homenagens a figuras históricas que lutaram pela justiça social e equidade. Uma das homenagens mais emocionantes foi dedicada a Aimé Césaire, poeta e político martinicano, cuja obra foi fundamental para o movimento Negritude.
Em um belo momento, entre tantos que marcaram a grande festa, ao final de uma Marselhesa revisitada, dez estátuas de ouro emergiram das águas do Sena, representando dez mulheres de destaque em sua luta pelos direitos femininos ou contra o racismo. Entre elas, uma única negra: Paulette Nardal. Jornalista e escritora martinicana, primeira mulher negra a estudar na Sorbonne, Nardal lutou pelo reconhecimento das contribuições dos negros para a cultura internacional e cofundou o periódico “La Revue du Monde Noir”. Embora influente, é pouco exaltada na história de luta por mais espaço para vozes africanas e afro-caribenhas na literatura e na política.
As referências explícitas ao movimento woke, um termo que se refere à conscientização sobre as injustiças sociais e raciais, também me marcaram muito nessa cerimônia. Ver jovens de diversas origens étnicas e culturais num mesmo palco para recitar um poema coletivo sobre igualdade e resistência enquanto um vídeo mostrava cenas de protestos globais provocou um nó nesta garganta tão engasgada.
Por aqui, o momento é mesmo de alerta. Mesmo com a “virada” nas últimas eleições, realizadas no início de julho, a França testemunha o avanço da extrema direita e se perde na busca de respostas convincentes. A beleza dessa abertura, suas provocações e a emoção toda foram certeiras. Que causem resultados imediatos. Precisamos todos.
Rejane Martins é mulher negra, empreendedora, criadora do Mesa de Cinema e proprietária da empresa Mesa Produtora, que realiza eventos de cultura e gastronomia como ferramenta de marketing de relacionamento. Integra a diretoria da Odabá – Associação de Afroempreendedorismo.
Foto da Capa: Divulgação
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