Com a tragédia climática que se abateu sobre o Rio Grande do Sul falamos que a prioridade é salvar vidas e após, reconstruir as cidades. O que entendemos quando dizemos isso? Para as autoridades, quando passar o desastre se trata de formular ações para a reconstrução de habitações, reparações de casas, consertos de vias de acesso. Isso é sem dúvida fundamental, mas há algo que será muito mais problemático de reconstruir, que é a comunidade emocional atingida pela catástrofe. Comunidades inteiras foram atingidas, um imenso número de refugiados foi disperso em inúmeros abrigos e bairros inteiros foram arrasados.
Uma comunidade é algo vivo, se caracteriza pela pulsão do estar-junto, como defende o sociólogo Michel Maffesoli em seu clássico O Tempo das Tribos (Forense Universitária, 1997). A obra auxilia no entendimento das consequência do desastre na vida das comunidades. Antes da enchente, as pessoas viviam sua vida cotidiana com calor humano, participando da ida a missa e das atividades comunitárias. Elas faziam isso porque partilhavam um mesmo território, um mesmo lugar. A força dos espaços está em possibilitar aquilo que é emocionalmente comum a todos. Você é habitante das ilhas do guaíba, você é um ilhéu; você habita a zona norte, você se define por um espaço. A primeira coisa que a enchente tira de você é um lugar.
A enchente dissolve a trama comunitária. Filhos são separados dos pais, esposas de seus maridos, as relações pessoais mais intimas ficam à mercê da sorte. A catástrofe não é sentida apenas materialmente, ela é percebida espiritualmente. É o componente relacional da vida social de que fala Maffesoli a do “o homem em relação” que se perde. Não precisa ser relações entre homens somente: basta vermos as cenas de tristeza e alegria promovidas pela separação e encontro de cada um com seu animal de estimação.
A relação humana se dá em um território. Sua integridade é que permite a sedimentação da cultura de um lugar. Um bairro é operário, outro é comercial, outro é especializado em livrarias, enfim, cada lugar é conhecido por seus personagens, por seus ruídos, pelas construções arquitetônicas. Eles são referências da alma de uma comunidade. Quando a enchente destrói tais espaços, é a própria cultura de um lugar que desaparece.
O que a tragédia destrói de mais profundo é o ethos coletivo de um lugar, de uma comunidade. “Dessa maneira se forma um ‘nós’ que permite a cada um, olhar para além da efêmera e extravagante vida individual, sentir-se como espírito da casa, da linhagem, da cidade” diz Maffesoli. A enchente destrói a cidade, retira o chão de moradores, os faz se sentirem perdidos.
Uma cidade são bairros, grupos sociais, corporações, multiplicidades de grupos “fortemente unidos por sentimentos comuns que estruturam uma memória coletiva”, diz Maffesoli. Daí o desespero das pessoas com a perda de seus objetos pessoais, principalmente de fotografias: é ali que está sua história, é ali que está sua fundação. A enchente leva não apenas prédios, mas também a memória. A perda do registro da vida em comum, da experiência do vivido, é fatal para a experiência subjetiva. Somos nossas memórias e essas lembranças estão associadas a pessoas e lugares. Maffesoli denomina estes agrupamentos de comunidades de destino.
A enchente arrasta o que nós é próximo, o que fazia parte de nosso cotidiano, o que garantia nossa “soberania sobre a existência”, diz Maffesoli. O pequeno mercado é uma referência do lugar. Ali todos se encontram, trocam confidências, observam seu comportamento, fazem fofocas. Se a enchente o destrói, é toda uma rede de relações sociais que vem abaixo: se ele sobrevive, é um lugar fundamental da reconstrução da cultura de um lugar. “O povo é estrito senso o “gênio do lugar”. É uma cultura, é sua vida no dia-a-dia assegura a ligação entre o tempo e o espaço. Ele é o guardião “não consciente” da socialidade”, diz Maffesoli. É uma identidade.
A vida cotidiana existe em um lugar. Destruindo esse lugar, você destrói a base do laço entre moradores, cidadãos, famílias e amigos. O esforço de sobrevivência dessas relações ocorre quando vemos os mesmos, de barco, procurando os conhecidos na vizinhança de um bairro atingido pela enchente: eles conhecem seu temperamento, sabem o que pode levá-los a recusar ou aceitar ajuda. É o esforço de sobrevivência de um investimento afetivo que está em jogo nas operações de salvamento: um amigo que ficou para trás, um familiar que subiu no segundo andar de uma casa, um animal acuado pela força das águas.
O governo imagina que após o salvamento se trata de reconstruir a arquitetura, reconstruir moradias, reconstruir habitações. Isso é verdade, é claro, e muito importante, mas existe esse processo cultural e vivencial interrompido pela catástrofe. Se pensarmos na reconstrução em termos puramente racionais, estaremos fazendo uma reconstrução parcial da cultura do porto-alegrense vitimada pela tragédia porque lhe faltará alma. É preciso pensar também em termos “daquilo que nos une a um lugar, lugar que é vivido em conjunto com outros”, diz Maffesoli.
Existia um projeto antigo desenvolvido pela Prefeitura de Porto Alegre chamado “Memória dos Bairros”. Historiadores iam a campo recuperar a história das comunidades na visão dos moradores. Esse me parece um importante ponto de partida para recuperar o “gênio do lugar”. Será preciso não apenas o trabalho de arquitetos, engenheiros e planejadores para reconstruir a cidade destruída pelas águas. Será necessário um trabalho de memória para reconstruir na cidade arrasada o que Maffesoli chama de lar “onde o espaço e o tempo de uma comunidade se deixam ler”.
A conservação da vida apenas não basta: é preciso a recuperação do enraizamento. Diz Maffesoli que o lugar se torna laço, imagem que nos lembra dos vínculos que as pessoas tecem em um lugar, por participarem dos mais diversos agrupamentos (igrejas, amigos, bairros, etc). São relações de vizinhança, afinidades e sentimentos partilhados por moradores que foram dissolvidos. A enchente carregou espaços que eram referências – o ginásio de uma escola, uma igreja local. Não precisamos apenas de uma nova moradia após a tragédia: precisamos de um lugar na vida social. É provável que é esse apego ao lugar que está por detrás do enorme esforço solidário em defesa das vítimas. Se não formos capazes de pensar como reconstruir a cultura dos lugares atingidos pela enchente, o retorno das vítimas ao mundo após as águas será de extrema solidão.
Jorge Barcellos é doutor em Educação, autor de O Êxtase Neoliberal (Clube dos Autores).