Tem sido emocionante testemunhar o esforço de recuperação do Rio Grande do Sul. A maneira como as pessoas se uniram para recuperar estradas, pontes, empresas e as vidas de tantos que foram afetados pelas enchentes deve ser motivo de orgulho para todos os gaúchos.
Mas junto com o esforço de recuperação deveria vir uma pergunta: como fazer isso evitando que novas tragédias como essa aconteçam?
Recuperação, reconstrução e realocação
São palavras semelhantes, mas há importantes diferenças entre elas. A recuperação significa dar às pessoas e às empresas condições para retomarem as suas vidas. Tratar da saúde física e psicológica de quem foi afetado pela tragédia, moradia a quem as perdeu, apoiar financeiramente pessoas, empresas e cidades. Não há dúvida de que tudo isso é necessário. Mas não significa necessariamente que tudo deve voltar a ser como antes.
Reconstrução, diferente da recuperação, significa, no sentido mais literal, refazer o que foi destruído, ou seja, na forma e no local que estavam antes da destruição. É a palavra mais utilizada atualmente. O governo até criou o ministério extraordinário da Reconstrução do Rio Grande do Sul, para dar maior visibilidade à presença do governo federal e do seu possível candidato ao governo do estado e ao senado. Política e tragédias andam juntas. Dão mais votos e dinheiro para os estados e cidades afetados do que os investimentos em prevenção. Mas esse é outro assunto.
A questão mais relevante aqui é: reconstruir para que sejam destruídos novamente? Ou realocar moradias e outras instalações para locais mais seguros? No caso do Rio Grande do Sul, os governos federal, o estadual e os municipais estão atuando no sentido de tentar reconstruir tudo, ou promover uma recuperação segura e eficiente? Inicialmente o governador do estado falou de fato em realocação.
Depois, isso virou a realocação temporária, e o que se vê hoje é o predomínio de esforços de reconstrução e recuperação. É compreensível. Principalmente em locais em que as casas e demais instalações não foram totalmente destruídas. Mas é, no mínimo, temerário.
Como já mencionei em várias colunas aqui na Sler, as mudanças climáticas vieram para ficar. Os cerca de 3 trilhões de toneladas de gases de efeito estufa que a humanidade já injetou na atmosfera vão continuar lá por pelo menos centenas de anos. E nós continuamos injetando 37 bilhões de toneladas todos os anos.
Assim, os eventos extremos não apenas tendem a se repetir, como a ficar mais extremos e frequentes. Por isso, há muitos locais que deveriam ser abandonados, transformados em parques e áreas de proteção – inclusive para eventos extremos, e outros tipos de ocupações e atividades que representassem pouco risco às pessoas e a seus patrimônios. O que inclui não apenas os locais onde houve destruição, mas também onde poderá haver no futuro.
Vejamos a seguir as áreas onde não deve mais haver ocupação permanente.
Planícies de inundação
As planícies que se estendem às vezes por muitos quilômetros a partir das margens dos rios são denominadas, em geografia e geologia, de “planícies de inundação”. E recebem esse nome porque, de tempos em tempos, inundam!
As planícies de inundação são muito atraentes para urbanização, instalação de indústrias e agricultura, pois são planas, contêm água abundante e solos férteis. No mundo todo há ocupações, por vezes muito densas, nesse tipo de terreno.
No Brasil muitas cidades foram construídas ao longo dos rios. E não só daqueles que tem planícies de inundação extensa. Mesmo rios de montanhas atraem as populações e as atividades industriais por um lado pelo fácil acesso à água e, pelo outro – o que é muito ruim, pela possibilidade de despejo de esgoto sem tratamento. E a maioria deles apresenta pequenas planície de inundação onde há considerável atividade agrícola.
Essa realidade, no entanto, precisa mudar. As cheias ficarão cada vez mais catastróficas e morar ou ter o negócio do qual você depende nesses lugares ficará cada vez mais arriscado. Até mesmo as seguradoras já estão se dando conta disso. E em breve não haverá nem como recuperar o patrimônio perdido.
Isso significa realocar milhões de pessoas, empresas e outras atividades para áreas mais seguras. A um custo muito alto. Mas que será menor do que as vidas e bens perdidos nas cheias catastróficas, que serão cada vez mais comuns.
Encostas
Se você olhar uma serra à distância, verá que ocorrem deslizamentos de terra (o termo técnico é deslocamento de massa) mesmo em lugares onde não há nenhuma interferência humana. É um processo natural. O solo vai se desenvolvendo sobre a rocha, criando porosidade, que facilita a absorção de água. Quando ocorre uma chuva intensa, ou contínua, o aumento da pressão dos poros facilita o colapso.
O potencial de colapso depende do ângulo do declive, que varia conforme o tipo de solo, e da transição entre a rocha fresca e o solo (se for abrupta pode se formar uma camada de água entre eles, facilitando o deslocamento). Mas, em todos os casos, quanto maior o declive, maior a probabilidade de haver deslizamentos.
Em áreas de ocupação humana, outro fator que causa deslizamentos é a exposição do solo, ou seja, retirada da vegetação, que facilita a infiltração rápida de água e o aumento da pressão dos poros. Em Petrópolis, nas chuvas de 1988, um morro cujo topo havia sido aplainado e exposto para fazerem um campo de futebol, colapsou, causando o desabamento de dezenas de casas e um número equivalente de mortes.
No Brasil, e em muitos outros países, principalmente na América do Sul, os morros de cidades são ocupados por favelas, por moradores que, não tendo como adquirir imóveis nas regiões mais planas dos melhores bairros (onde muitos trabalham), escolhem os morros como a única opção de moradia.
A ocupação dos morros, incluindo uma região do seu entorno onde pode chegar a massa de terra deslocada, deveria ser proibida. Mas aqui, como no caso das planícies fluviais e margens de rios, estamos falando em deslocar milhões de pessoas, a um custo econômico, social e político (para quem se atrevesse a fazê-lo) muito altos.
A transição
Evidentemente, não vamos conseguir fazer tudo isso em pouco tempo. Há maneiras de se reduzir o risco para quem vive, e vai permanecer, em áreas que não deveriam ser ocupadas. A construção de diques e barreiras para evitar ou reduzir a intensidade das inundações, a construção de prédios mais resilientes (ou pelo menos locais reforçados para resistir à força da água onde pessoas e até bens possam ser abrigados), a criação de “zonas porosas” em cidades, planos de escoamento para as regiões mais inundáveis (e morros) das cidades – com manutenção sempre atualizada, sistemas de alarme para inundações e deslizamentos.
Algumas dessas medidas poderão ser eficientes por muito tempo. Poucas, se forem bem projetadas, poderão ser até permanentes. Mas, na maioria dos casos, não oferecerão segurança duradoura.
Não faz sentido reconstruir casas e instalações que foram totalmente destruídas. Essas áreas não devem ser mais utilizadas para ocupação humana. E serem transformadas em parques, zonas de proteção ambiental, ou mesmo áreas para armazenagem de água em caso de eventos extremos.
Além disso, muitas áreas que ainda não foram atingidas, o serão num futuro breve. Os geólogos e engenheiros tem condições de mapear essas áreas (já existem mapas de áreas de risco em muitas cidades brasileiras, todas elas ocupadas!) e recomendar as melhores soluções.
A barreira da condição humana
De todas as incertezas relativas à crise climática e aos demais processos de degradação ambiental do planeta a maior delas se refere ao comportamento humano. A maioria de nós já sabe o que está acontecendo, mesmo que de maneira incompleta1.
Quantas tragédias, quanto sofrimento serão necessários para que a humanidade se dê conta de que precisa acelerar as mudanças que são necessários para se adaptar às transformações do planeta, e evitar que fiquem ainda piores? Ninguém tem essa resposta.
O longo prazo
No entanto, na medida em que as tragédias se sucederem, e as previsões da ciência forem se confirmando, mais e mais pessoas irão se convencendo que medidas de prevenção e adaptação amplas e urgentes se farão necessárias. É nesse sentido que, relembrando mais uma vez a expressão do Ariano Suassuna, eu sou um “realista esperançoso”. Não tenho dúvidas que a humanidade irá reagir. Mas também sei que antes haverá mais sofrimento e perdas dolorosas. Só me resta torcer para que não sejam duras demais.
Se você é um dos que já se convenceram que precisamos agir mais rápida e amplamente, junte-se ao esforço de convencer os demais. E dê o exemplo com atitudes concretas. O planeta, e a humanidade, precisam de você.
Nota:
1Meu livro “Planeta Hostil” foi a maneira que encontrei para colaborar com essa conscientização. O livro descreve de forma abrangente os processos de degradação ambiental do planeta, e pode ser adquirido em livrarias físicas de todo o Brasil, no site da editora Matrix (www.matrixeditora.com.br) e em livrarias online como a Amazon.
Observação final: para vídeos e textos adicionais confira também meu Instagram @marcomoraesciencia.
Foto da Capa: Bruno Peres / Agência Brasil
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