Tem uma guerra acontecendo nas ruas. Mais uma, na verdade. São tantas que já não faz diferença, ninguém dá bola. Mas eu me incomodo particularmente com essa. Talvez porque o Recuo de Jardim já nasceu débil e eu há muito tempo acompanho seu sofrimento. São derrotas após derrotas. Ele tem sido amassado a olhos vistos pelo poderoso exército dos Pavimentos.
Também, que força tem uns metros vegetados diante de um batalhão de paralelepípedos, cimentados, porcelanatos e outros pesos pesados? Ainda por cima, dizem – e eu não duvido –, que os Pavimentos são apoiados pelas farmácias da capital. Por pura ideologia! Elas temem que o verde tome conta das ruas. Acreditam que está em curso uma conspiração contra doenças respiratórias. Ar puro, já pensaram? E, pior, as farmácias correriam o risco de sumir atrás das árvores! Sem falar na convivência com pássaros, borboletas e até flores! Quem se lembraria delas?
Não à toa, durante o dia, cercam suas lojas com automóveis ameaçadores até para pedestres que já não ousam procurar uma farmácia a pé. À noite, se defendem com uma luz branca azulada tão intensa que impede fotossíntese até em pensamento.
Do que estou falando? De uma lei criada pelo Plano Diretor de Porto Alegre de 1959, que obrigava as edificações a reservarem um recuo de 4m para um jardim frontal em cada lote. A ideia era fazer uma cidade com lindos corredores verdes separando as calçadas das fachadas dos imóveis. Uma aproximação da ideia de cidade jardim. Sonho nascido no século XIX na Inglaterra como consequência da poluição e da insalubridade que a Revolução Industrial, movida à combustão do carvão, trouxe para as cidades. Cidades que até então não se preocupavam com o verde. Elas eram, de fato, distintas, em todos os sentidos, do campo, do mundo natural.
O mesmo Plano Diretor também continha regras de afastamento das divisas laterais e de fundos do lote e um incentivo para o térreo livre, para que o edifício ficasse sobre pilotis. Esse pavimento, admitida alguma porcentagem fechada, não contava como área construída, era vantajoso.
Num sonho utópico, os jardins da parte da frente teriam continuidade nas laterais, fundos e por baixo dos edifícios constituindo um verdadeiro parque verde. Aos poucos, Porto Alegre ficaria parecida com o Plano Piloto de Brasília. Um delírio, não tinha como se realizar. Havia pressupostos intransponíveis. O primeiro é que o projeto de coletivização do uso do solo estava na cabeça desses urbanistas e não da sociedade. Outro é que desenhar uma cidade a partir de um terreno limpo, como fez Lucio Costa, é diferente de desenhar sobre uma cidade existente habitada por cidadãos com infinitos anseios particulares. Inclusive os de amor à cidade existente.
A lei decretava a morte da Porto Alegre de até então. Isso mesmo. Era, e ainda segue sendo em muitos aspectos, de uma radicalidade incrível. A ideia era essa mesma, refazê-la de acordo com os princípios urbanísticos do século XX: a cidade rodoviária, dimensionada para o fluxo intenso de automóveis e não para os pedestres. A contradição do Plano é que esses automóveis precisavam ser guardados e acharam seu lugar de repouso justamente onde? Nos pilotis. Sem dúvida, os lugares mais em conta para quem não queria investir em subsolos.
Porto Alegre até então tinha suas construções com as fachadas coladas umas nas outras na beira das calçadas. Não havia grades e portões antes das portas. Ainda vemos cidades assim na Campanha ou no Uruguai. O pessoal abre a porta ao final da tarde, senta na soleira e começa a conversar com quem passa. Garagens eram coisas raras, andava-se de bonde para tudo que é lado. Em ruas mais movimentadas, espaços comerciais ofereciam uma loja ao lado da outra, sem espaço para o automóvel subir na calçada. É o que ainda se vê em muitas ruas que sobreviveram à nova lei (até quando?). Outros tempos, vocês vão dizer e eu vou rebater: essas ideias voltaram e estão norteando o planejamento de cidades mundo afora. Espaço público para ser vivido e não como canal de trânsito.
Não é minha intenção, e de nada adianta julgarmos o passado, cada época tem suas ideias e, boas ou más ao nosso olhar, suas razões. O importante é olhar para o que temos. E o que temos é uma grande oportunidade de transformação de nossas ruas de acordo com princípios contemporâneos que estão revolucionando cidades mundo afora. Falo do estoque impressionante de áreas mal utilizadas pelo Recuo de Jardim que podem ser usadas para transformar algumas ruas de bairros mais densos em lugares aprazíveis de convivência.
Não precisamos passar o resto dos tempos separados das fachadas dos edifícios por grades ou com pavimentos destinados aos automóveis. É possível somar essas faixas mal aproveitadas ao gabarito das ruas, redesenhando-as. Algumas ruas, por exemplo, passariam de 16m para 24m de largura total, de fachada a fachada oposta, podendo se tornar lugares agradáveis de se viver. A faixa de trânsito poderia sair do eixo atual, ser sinuosa, abrindo espaço para mini praças, minifeiras e outras utilidades. A rua como lugar e não como canal.
O contra-ataque do Recuo de Jardim, essa é a ideia: socializá-lo, torná-lo público, quebrar a rigidez da linha reta que o tráfego de veículos comanda. Utopia? Certamente, mas factível e bem mais de acordo com os novos tempos.
Fotos: Acervo do Autor.
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