As cidades cresceram tanto que se tornaram intangíveis, é impossível apreendê-las. Faz tempo que deixamos de habitar aquilo que durante milênios chamamos de cidade. Hoje, vivemos cada vez mais em territórios extensos, grandes manchas urbanas esparramadas por dezenas ou centenas de quilômetros quadrados em todo o planeta. O que ainda chamamos de cidades são divisões políticas antigas, resquícios de um passado não tão longínquo. Talvez os bairros digam, hoje, mais de nós mesmos do que as cidades. Já se percebe um vínculo de identidade relativo a eles.
Mas o fato é que ainda nos reconhecemos como cidadãos de cidades, sejam elas abstratas ou não. De alguma forma, a cidade que guardamos em nossas cabeças se mantém inalterada em nossa memória tal qual um burgo medieval. Essa cidade a que nos identificamos está cada vez mais no plano simbólico, no reconhecimento de uma identidade construída ao longo da história. Até quando? Certamente o futuro vai tornar essa construção mental cada vez mais importante, pois estamos nos desterritorializando, entrando lentamente no universo do metaverso. Cada vez menos os jovens dizem em suas conversas telemáticas onde estão. Isso já pouco importa.
Cada vez mais devemos exigir dos administradores da cidade, nossos políticos governantes, um olhar mais atento ao plano simbólico na tomada de decisões de planejamento ou de obras. Intervir na cidade não pode ser uma atividade simplesmente pragmática, econômica. O aspecto cultural é fundamental. As implicações são profundas, afetam a própria identidade da cidade e podem fazer com que percamos nossas referências. Você já pensou em viver num mundo desconectado do mundo físico? Sendo apenas um ID e senha, alojado em um ponto do mundo urbano global identificado apenas por GPS?
Não quero assustar ninguém, mas se não falarmos sobre isso, é para lá que estamos indo. Já falamos aqui do descaso com a memória; das casas de escritores, entre outras, que vem abaixo; do desinteresse pela delimitação das Áreas de Interesse Cultural; da venda de parte do cais do porto; da ideia de fazer do Quarto Distrito uma Manhattan; dos parques temáticos e rodas gigantes e outras atrações em busca de uma disneylândia local.
O quanto de tudo isso tem o nosso jeito porto-alegrense de ser? E que jeito seria esse? Essa é uma discussão que pode ser resolvida no setor de financiamento dos bancos? Em leilões na Bolsa de Valores de São Paulo? Acho que não.
Os shopping centers, aeroportos, hotéis, a arquitetura e uma infinidade de serviços são absolutamente iguais no mundo inteiro. Às vezes me pergunto se o prazer tão grande de viajar, hoje, não tem um sentido de comparar o quanto o Carrefour francês ou argentino é igual ao nosso, ou a Adidas, ou a Louis Vouiton, a Lindt e assim por diante. E também comparar preços, felizes, nem sempre, de comprar lá mais barato do que aqui depois de ter gastado uma fortuna com passagens e hospedagem…
São muitos os espaços reais e imaginários que representam a alma porto-alegrense. O Parque Farroupilha, em Porto Alegre, é um deles. A Redenção, como a chamávamos, faz parte da minha história de vida. Era lugar de piquenique dos meus pais e amigos aos domingos, lugar de alugar bicicleta triciclo com correia e torpedo (inesquecível a velocidade que ganhava), depois as de duas rodas e, máximo dos máximos, remar no lago com os pequenos barcos de madeira. A roda gigante que dava medo, o Austin inesquecível! Cruzar a Redenção para chegar à faculdade, ao trabalho por e para o lazer, quem nunca o fez em todas as direções? Os passeios aos domingos no Brique, os namoros, as manifestações políticas e democráticas, os shows, os bailes da cidade e tantas e tantas atividades sempre livres, públicas e abertas a todos.
A Redenção nasceu com esse signo, de ser de todos, de uso público mesmo quando era propriedade privada. Servia de estacionamento e acampamento para forasteiros em busca do comércio e serviços da capital. Imagino que as fogueiras e festas que fizeram ali para aquecer e alegrar suas noites plantaram a chama que até hoje segue viva naquela gleba: a da alegria, fraternidade e liberdade. Também não é coincidência que o monumento aos que lutaram contra o nazifascismo na Segunda Guerra tenha sido construído ali.
Os proprietários foram sensíveis e responsáveis: doaram aquela área para que ficasse vazia em forma de parque, admitindo-se construções de uso educativo e cultural. E assim a Redenção se transformou em Parque Farroupilha, em 1935, em brilhante projeto de Christiano de La Paix Gelbert homenageando o movimento republicano libertador. A cidade ganhou muitos outros parques, mas grande parte dos porto-alegrenses quando viaja e quer falar que a sua cidade tem um lindo parque, certamente pensa na Redenção.
Os que querem cercar o parque – incansáveis obstinados não desistem dessa ideia nunca –, cedê-lo para uma empresa, substituir orquidário por praça de alimentação, plantar estacionamentos, só estão demonstrando que não entendem nada do que a alma do porto-alegrense precisa. Não sabem que ela necessita desse e de outros símbolos urbanos representativos da sua identidade para dizer, sim, sou dessa cidade. Símbolos importados e pasteurizados só vão nos transformar em qualquer lugar de um mundo cada vez mais igual e sem graça.