São Paulo, dezembro de 2024. Um policial, numa abordagem, joga um homem de uma ponte. Pelas imagens e por informações divulgadas, não houve qualquer reação de defesa por parte do presumível suspeito. Parece um saco de lixo atirado sobre o córrego.
É nítida a insustentável leveza daquele ser. Recolhido com facilidade, despejado num gesto algo automático, quase brando. Lembra até uma receita de bolo, que orienta acrescentar à certa mistura um novo elemento, sem bater. Aparentando até uma certa gentileza, o que garante que fique mais aerado.
Foi instaurado o inquérito. Há necessidade de julgar com amplo direito ao contraditório. Não se pode minimizar o fato, mas também deve-se evitar um pré-juízo, sob pena de prejuízo de análise. Foram mais ou menos essas as palavras emitidas, num comunicado pré-elaborado.
O que faz um homem obedecer cegamente a um treinamento? Teria mal interpretado o que aprendera e seguido apenas o chamado selvagem de seu próprio caráter perverso? Ou seria o reflexo de displicência moral de alguns dúbios superiores que incitam a violência?
Sobre outro recente acontecimento de abordagem policial, que resultou na morte de um estudante de medicina, uma colega médica, experiente, repartiu suas reflexões. – Não deveriam os policiais receber o mesmo treinamento de quem atua na área de saúde? – Segundo consta – seguiu ela – o jovem morto estava bastante “alterado e agressivo” e resistira ao ser abordado. – Não é assim que nós, médicos e enfermeiros, recebemos muitos pacientes sob efeito de drogas ou com problemas psíquicos e temos que contê-los, de forma segura, para medicá-los?
Lembro de uma entrevista, dada pelo admirável psicólogo gaúcho Vinicius Jockymann, a um repórter que criticava a necessidade de forças policiais em jogos de futebol. Com clareza respondeu que uma sociedade não resistiria à barbárie, sem mecanismos de controle de instintos de agressividade. O que é ainda mais verdadeiro quando se trata de coletivos.
Mas a doutora Cristina, minha amiga, tem razão. A solução para o exercício da ação policialesca deve estar na capacitação adequada. Quem é preparado para a guerra segue uma cartilha. No açougue, vende-se e compra-se carne, na padaria, pão e, às vezes, sonhos.
Espera-se que, de tantos inquéritos abertos pela profusão de excessos, resulte uma mudança firme e consequente. O sofrimento é também do profissional, que, mal preparado, adoece e iguala-se em violência àquela que deve conter. Precisamos “falar” sobre isso. Sob pena de estarmos jogando de cima de uma ponte toda uma já combalida ordem social. O que está logo adiante não é difícil de antever.
Se dependermos de relativizações, que medram em opiniões de inúmeros sabujos sabichões metidos a sábios de plantão, esse episódio logo também será esquecido.
– Saiu caminhando, ele nem se machucou – pronunciou-se alguém. – Não foi golpe. Não houve maior consequência.
– Mas, afinal, foi numa ponte ou num viaduto? – questionou outro.
Para um pretenso especialista, anos de cais do porto, a questão poderia ser rotulada como erro de procedimento. Sem ter o que dizer, de um ato tão límpido quanto escabroso, o sujeito baseou sua análise na experiência de observador de estiva.
– A exemplo do que acontece nos transportes de cargas – comentou o velho portuário – existe a ova e a desova. A ova, também conhecida por operação de embarque, visa o cuidado na colocação de itens ou mercadorias. A desova, por sua vez, refere-se ao desembarque, à remoção de uma carga. Ambas devem ser realizadas por profissionais especializados. – Nesse caso específico – sentenciou ele – a desova foi feita sem o mínimo zelo.
Todos o textos de Fernando Neubarth estão AQUI.
Foto da Capa: Adaptado de Edvard Munch. As meninas na ponte, 1901