Estou em Cidreira, uma praia do Rio Grande do Sul. Depois da aposentadoria, é a primeira vez que venho, depois de mais de vinte anos, sem data prévia para retornar. Estou completando dois meses. Quando trabalhava, vinha no máximo um mês de férias. Vantagens da aposentadoria a que todos deveriam ter direito depois de mais de trinta e cinco – no meu caso, trinta e sete – anos de trabalho e contribuições. Mas esse será um direito cada vez mais raro, a depender das políticas neoliberais, do desmonte da legislação social e do investimento do capital na precarização do trabalho.
Por isso, me obrigo a refletir, mesmo diante das águas que agora são excepcionalmente azuis como as praias de Santa Catarina e não mais o marrom chocolate características de Cidreira, além da disponibilidade do milho na beira da praia. Como podemos fazer com que a experiência à beira-mar seja fonte para o pensamento crítico? Meus últimos textos em Sler foram escritos na praia. Mas, a praia, o mar, não pode ser apenas o lugar onde você escreve. Estou, casualmente hoje, quinta-feira, quando penso no que vou escrever, na praia lendo Ausência, de Byung-Chul Han, e deparo-me com o capítulo intitulado – adivinhem! – Terra e Mar. O livro é um notável elenco das diferenças entre a filosofia, estética, arquitetura e artes do Extremo Oriente e Ocidente. Han diz que a cultura oriental é uma importante referência para nós porque é uma cultura da ausência, enquanto nós estamos preocupados com uma cultura da essência. Eu estou preocupado com as reflexões que sua discussão possa fazer para a política, que, como sabem, vai de mal a pior.
Terra e mar
Se fosse outro contexto, minha preocupação seria apresentar o resumo das teses anteriores do autor nos capítulos precedentes desta obra para que o leitor tenha acesso ao contexto em que se insere o capítulo com o qual irei dialogar. Mas aí ficaria grande demais e este é só um ensaio, mas como gostaria apenas de fazer relação das ideias de Han sobre o mar – Cidreira também é mar, ok? – deixo para o leitor interessado a indicação da obra para o próprio fazer aquele trabalho. O capítulo Terra e Mar leva o subtítulo “Estratégias do pensamento”, pois Han quer usar o mar como metáfora para discutir o mundo do pensamento, como o fazemos e como a cultura do Extremo Oriente faz. E eu acredito que isso possa dizer algo do momento em que vivemos.
Han inicia o seu texto afirmando que a navegação aventureira é uma metáfora do pensamento: “dominar o oceano tempestuoso parece ser uma empreitada heroica. O mundo se apresenta como uma resistência que deve ser quebrada por meio de um ativismo.” Quer dizer, para Han, conhecer o mundo é também enfrentar a resistência dele, e por isso lembra que, para Hegel, o pensamento é essa navegação em um oceano infinito. Nós, da esquerda, estamos neste ativismo que luta contra a direita, mas do jeito que as coisas estão, tudo parece mais um imenso oceano da direita. Você olha o mar de Cidreira e se pergunta o que há do outro lado do oceano, e isso é o desejo de conhecer, mas, nos termos de Hegel, “diante dessa imensidão oceânica e dessa incerteza, o espírito é tomado ‘pelo terror’” (Han, Ausência, p. 117).
Han diz que Hegel faz uma observação sobre o mar que é geofilosófica, isto é, é uma reflexão sobre a inspiração que o mar causa nos homens à maneira do pensamento greco-romano. Na descrição de Hegel, o mar é “astuto”, exige “prudência” e “coragem”, exatamente como o mar de Cidreira que observo agora e que dispõe de guaritas e salva-vidas que andam na areia chamando os incautos. No mar de Han, que é o da Coreia, cercada pelo Mar Amarelo, da China e do Japão, como o nosso de Cidreira, sua violência advém da flexibilidade, da maleabilidade das águas, que não resistem à pressão, nem do vento, diz Hegel, nem do veranista incauto, digo eu. Para Han, o mar inspira a maleabilidade ou amabilidade; para Hegel, “a água é em si traiçoeira, pelo simples motivo de que ela constantemente muda de forma, não possui uma forma própria, nunca é igual a si mesma e carece de qualquer constância” (p.119).
Estou sentado à beira do mar, é sexta-feira. É de manhã, o sol é forte. Sob as areias de Cidreira, também vejo que “de fato, a terra não é flexível e oferece resistência à pressão externa” (idem). Qualquer pessoa que já teve de afixar um guarda-sol de praia sabe disso. Quando você ainda é inexperiente, enfrenta muita dificuldade, pois quer enfiar uma das peças simplesmente direto na areia. Se estiver muito úmido por baixo, há mais resistência. Você aprende a usar o aparelho chamado “saca areia”, que foi justamente inventado para você vencer essa resistência. Essa parece ser a mesma resistência da população de Porto Alegre que vota na direita e assiste, mais uma vez, às inundações da cidade se repetirem. Não há sacaria para consciência política.
O mar como metáfora do conhecimento
A metáfora de Han continua. A terra é estável. O mar é instável. O mar está na origem das nossas percepções porque a constância da terra é uma propriedade importante da essência das coisas. “A percepção que Hegel tem da água e do mar é inteiramente guiada por uma necessidade compulsiva de firmeza. Somente a orientação pelo que é firme faz com que o mar pareça algo “instável” e o elemento mais “incerto”. Por isso dizemos também que é importante “ter os pés no chão, ter os pés na terra”.
Han diz que também no pensamento de Kant o mar é metáfora do conhecimento. Em seus “Prolegômenos”, incluído em seus Textos Selecionados (Abril Cultural, 1984), Kant quer confiar um barco para navegar no mar a um marinheiro que “possa manobrar o barco com firmeza, de acordo com os princípios seguros da arte náutica, retirados do conhecimento do globo e, munido de uma carta náutica completa e de um compasso, para levá-lo para onde melhor lhe parecer”. Se Kant estivesse em Cidreira, teria certeza de que aqui os marinheiros navegam com segurança. Eu olho o mar e vejo poucos barcos no horizonte. Me pergunto por que desapareceram, pois havia mais no passado.
Eu pesquiso e vejo que houve um naufrágio em Cidreira em 1921, do barco Cidreira, e depois do Stella Maris, em 1953, e o último, o Irene, em 1958. Dos 357 naufrágios gaúchos, apenas três foram em Cidreira. Aqui, pelo menos, os cidreirenses dominam a arte náutica, dominam princípios das coordenadas. “O pensamento ocidental surge da necessidade de um fundamento sólido. É justamente essa necessidade compulsiva da constância e univocidade que faz com que qualquer desvio, mudança ou indefinição pareça uma ameaça” (p. 120). Aqui lembro de Eduardo Leite e sua Secretária Estadual de Educação desesperados para que as aulas iniciassem na data programada. Eles também viviam essa compulsão da univocidade de que fala Han. Aqui também lembro de nossos debates de esquerda, sempre em torno de princípios seguros. Será que estamos errados?
É que em Kant, a imagem do marinheiro no mar evoca a razão como “a última pedra de toque da verdade”. Na relação do mar com a terra, a verdade está no solo, enquanto a intuição está nas águas. Por isso, a imagem da noite em Han é um espaço conflituoso, “espaço imensurável do suprassensível, repleto de espessa noite” (p.121). Isso fica claro quando hoje você passeia pelo litoral de Cidreira e vê as águas e o céu noturno se confundirem. Você sente necessidade de qualquer luz para iluminar a escuridão e o calçadão de Cidreira é o melhor local, e você anda por ele, preferindo-o às regiões mais afastadas e sem luz. Essa necessidade de luz noturna, que o caminhar na praia de Cidreira impõe, é da mesma natureza da necessidade que temos de conhecer, de uma luz que ilumine a escuridão.
O imperativo de verdade como compulsão
Han, entretanto, nos alerta para o caráter enganador dessa busca. “Mesmo a “espessa noite”, quando examinada mais de perto, não é uma facticidade. Ela é, na verdade, o produto de uma compulsão. É somente o imperativo da verdade que apaga todas as luzes amigáveis. É somente uma compulsão para uma ordem sólida que faz com que a água pareça instável, indeterminada e traiçoeira. Sua maleabilidade e amabilidade não são propriamente conhecidas” (p. 121).
Han diz que esta não é a posição de Heidegger. O mar nos oferece o contato com o abismo, e por isso a ele se deve a clara coragem para a angústia essencial. “O início do pensamento não é a confiança no mundo, mas a angústia” (p. 122). O mar abissal é onde o pensamento precisa se expor para criar, e Han cita a viagem que Heidegger fez à Grécia e onde Píndaro teria chamado Creta de “ilha que doma as ondas” ou “a cidade natal dos remadores habilidosos”. Por isso, o pensamento também terá de “domar as ondas selvagens, pois ele se move nas águas onduladas de um mar”. Há dias que as ondas de Cidreira são mais selvagens, outras menos. Mas o conhecimento não está no estímulo que sua violência provoca, mas na observação atenta de seu movimento. Eu observo o modo como as aves se aproximam das ondas para pescar. Há ali uma notável pedagogia da aproximação, no movimento do elegante pássaro e o peixe que sob as águas se esconde como presa. A esquerda deveria se inspirar em seus elegantes movimentos em sua luta.
É deste ponto que começa a comparação de Han do pensamento ocidental com o oriental. Ele afirma que os chineses desconhecem as tensões que o mar oferece ao pensamento. Ele cita Zhuang Zhou, o influente filósofo chinês que viveu por volta do século 4 a.C. durante o período dos Reinos Combatentes. Nesse período, de grande desenvolvimento filosófico, a ele deve-se a escrita da obra conhecida por seu nome, o Zhuangzi, que é um dos dois textos fundamentais do taoísmo, ao lado do Tao Te Ching. Nele, diz Han, o que aparece é uma notável diferença de escala. Zhang fala do mar do norte, onde vive um peixe gigante que se transforma em um pássaro “cujas asas têm uma extensão de mil milhas”. Não há o cisne de Cidreira que luta contra o mar, “devido ao seu tamanho, ele já se distingue do pequeno e indefeso cisne do mar. O mar não tem nada de ameaçador considerando o tamanho dos seus habitantes. A relação com o mar é determinada por uma ótica completamente diferente”, diz Han (p. 123).
Mudar a perspectiva de olhar
A filosofia oriental nos ensina que tudo é um problema de perspectiva, de olhar. Nesta literatura que ocupa o lugar da filosofia, pássaros gigantes não são carregados pelos ventos, apenas flutuam neles. Tanto o mar como o ar não são imensos ou hostis, em vez disso, eles “são tão grandes, tão abrangentes quanto o mar. Se ele é o mar, então este não oferece nenhuma ameaça” (p. 124). Essa inversão de postura, de posição, seria muito interessante para os tempos que correm: frente ao capitalismo, sempre nos imaginamos como seres insignificantes. Não temos nenhuma saída além de ceder à precarização do trabalho, assim como os governos de esquerda não têm nenhuma saída a não ser ceder aos conchavos e acordos dos caciques de direita de plantão. Isso é, no entanto, um problema de nosso ponto de vista.
Han nos ensina que a filosofia oriental segue mais as intuições do que as certezas. Deveríamos ser capazes de aumentar nosso lugar no mundo como os habitantes do universo de Zhuang Zhou. Leio essa passagem de Han na beira da praia e imagino que Lula é o pescador citado por Han de um conto de Zhou que, com sua vara de pescar, prende 50 bois como isca e os lança no Mar do Leste para capturar um peixe gigantesco que, com suas barbatanas, provoca ondas que se elevam como montanhas. Eu imagino um Lula lançando ao mar esses cinquenta deputados que atrapalham o seu mandato, que o manipulam, transformando o Congresso como a água do mar do conto de Zhou, “que se transforma em espuma” (p. 124). E seguem-se as imagens impossíveis (para a razão ocidental, é claro): da árvore cuja primavera dura mil anos, que contrasta com a cigarra que vive apenas um verão e não conhece nem primavera nem outono. “A árvore ultrapassa completamente sua imaginação. Então ela não a entende” (idem). Não é exatamente isso que falta à esquerda, essa imaginação do impossível do real, essa capacidade que tem o pensamento de Zhou de simplesmente avançar sem limites, sem se deixar fixar por alguma coisa? De história em história, “a conclusão de Zhuang Zhou é: o pequeno conhecimento não alcança o grande conhecimento”.
Os tipos de conhecimento
Vivemos no dia a dia do pequeno conhecimento. Ele é o senso comum das redes sociais, é o grupo de WhatsApp da família, ele é o noticiário do establishment. Diante do mar, estamos frente à metáfora do conhecimento, por sua imensidão. Tão grande que até a razão se torna pequena. É por isso que Han vê como problemática a tradução que o sinólogo alemão Richard Wilhelm (1873-1930) fez do peixe grande de Zhuang Zhou, Kuh, de “Leviatã”. Wilhelm, que viveu na China por 25 anos e era fluente em chinês, traduzindo clássicos, ainda assim não entendeu que o nome bíblico evoca imagens que não cabem no mundo de Zhou. “O monstro marinho do Antigo Testamento se rebela contra Deus, contra Sua criação. No imaginário do Antigo Testamento, o próprio mar é o símbolo do poder hostil a Deus, que ameaça a ordem divina. O nome “Leviatã” evoca, portanto, a ideia de criação e caos, que é completamente estranha ao pensamento chinês” (p.126). E Han vai tecendo a ligação tênue desses personagens com o mistério e o enigma, que servem para esconder seu saber, espécie de retração, e por isso, somente com violência e astúcia pode-se arrancar seu saber. “A natureza ama se esconder. A sabedoria chinesa, por outro lado, não se esconde. Não há retração escondendo-se no misterioso. Ao contrário, ela está sob a luz de uma evidência particular, da luminosa presença” (p. 127).
A luminosa presença de que fala Han é o sentimento do sublime. Eu caminho com minha esposa ao final da tarde na praia de Cidreira. É o entardecer, e o sentimento de olhar a paisagem marítima, com o céu e a cor do sol que se põe, ultrapassa o que Kant chama de Sublime, o que é “além de qualquer comparação”, como Kant diz na Crítica da Faculdade de Julgar, segundo Han. O sentimento de sublime surge aí como produto do conflito entre a imaginação e a razão, entre o sensível e o suprassensível. Mas isso ainda é pensamento ocidental, pois Han afirma que a intenção de Zhou, com a sobre dimensionalização das coisas, não é produzir o sublime. “É mais uma estratégia de deslimitação, de dessubstancialização, de esvaziamento. Ser grande significa transcender as distinções rígidas e as oposições, tornando-se uma amabilidade imparcial. Quem é tão grande quanto o mundo não é impedido ou obstruído pelo mundo” (p. 129).
A ideia é que você não habita Cidreira, você olha o mar imenso e consegue se deslimitar até abranger o mundo todo. “O ser-no-mundo tem que ceder lugar ao ser-mundo”, diz Han narrando uma caminhada sem cuidado onde aparecem criaturas gigantescas do primeiro livro de Zhou. No Extremo Oriente, diz Han, o conceito ocidental de “liberdade” é equivalente a “ausência de esforço”. “Não há esforço porque não opomos nada ao mundo, mas nos unimos totalmente a ele” (p. 130). Hegel acreditava que os chineses tinham uma relação negativa com o mar, porque ele significa apenas o “término da terra”. Era, entretanto, o contrário, pois a transição da terra para o mar não é do firme para o instável, o que incentiva ou a aventura ou a angústia. A relação com o mundo é diferente, é marcada por “uma profunda confiança no mundo”.
Águas de outono
É disso que trata, diz Han, o livro 17 de Zhuang Zhou, Águas de outono, o tratado sobre a água e o mar, o registro de uma conversa entre o santo do rio e o do mar. O diálogo oferece as características que distinguem a água dos rios e mares para o pensamento chinês. Elas estão associadas à como, no Oriente, são vistas forma, essência e aparência das coisas. Nesse sentido, a água não tem forma própria, mas não é amorfa. “Ela assume as formas do outro para se desdobrar. Como não tem firmeza, a água não exerce coerção. Por não resistir a nada, ela não entra em conflito” (p. 132). Isso sugere à política uma forma de relacionamento mais pacífica, onde “o fraco vence o forte, e o suave vence o duro”. Assim, diz Han, o mar simboliza aquele espaço de imanência mundana da indiferença. Nesse universo inspirado pelo mar, não existem padrões rigidamente delimitados (Zghou), tudo é um discurso onde é o fluxo, o movimento, o mais importante.
Isso teria a ver com a própria língua chinesa, que, sendo muito antiga, é uma língua do fluxo, rica em transições, estágios intermediários, cruzamentos. “Os valores gramaticais dos símbolos chineses antigos não podem ser definidos de forma inequívoca. Eles estão situados em um contínuo. Mas a maioria dos símbolos apresenta uma flexibilidade muito alta” (p. 134). Os símbolos e signos surgem no contexto, encarnam a transição de sentido e, desse modo, superam a tensão que a noção de essência provoca. O mar sendo vazio, é contraditório à essência. “Ele ausenta-se do mundo. O chinês antigo é ele mesmo uma língua do vazio e da ausência” (p. 135). Dessa forma, com elementos móveis, a identidade se delineia num contexto, em posições.
Isso sugere que talvez o fracasso da esquerda em reagir ao discurso de direita esteja justamente na plasticidade. Estamos o tempo todo preocupados com o projeto da direita, suas estratégias de conquista e manutenção no poder, a destruição do campo democrático que fazem nesse processo e esquecemos que talvez seu sucesso esteja justamente aí, na língua que usam e que é capaz de conquistar as consciências. Na inspiração de Han, o que pensamos que seja um discurso vazio de sentido, pois “vazio, em chinês, xu, não significa que lhes falte um significado. Não é uma negação. Ao contrário, está associado a algo positivo. Os símbolos vazios funcionam como a água, que também não tem em si uma forma (…), ela pode carregar, mover e vivificar tudo” (p. 136). No sentido descrito por Han, o discurso neoliberal usa palavras vivas, “símbolos que expressam uma processualidade verbal”, enquanto o discurso de esquerda é marcado por palavras “mortas”, “que só permitem um único significado. Pensamos que o discurso de direita é vazio de sentido, mas ele não é. Os chineses veem o idêntico, o imutável, o persistente ou o duradouro como morto. Por outro lado, transformações, mudanças, transições ou estados, de indiferença são afirmados como vivos ou vivificantes. Para a percepção do Extremo Oriente em geral, a vitalidade não se manifesta como uma força de persistência, mas como “uma força de transformação e mudança” (p. 137).
Lições para a esqueda
Enquanto a esquerda ainda for uma luz, ela ainda terá uma rigidez. Ela precisa fluir como água, exatamente como a do mar. Não persistir em objetivos fixos, mas buscar no chinês antigo aquele “halo de indeterminação” de que fala Han, buscar um discurso mais sutil que não possa ser capturado pelo discurso neoliberal. Quando se olha o mar e se busca nele uma filosofia, encontramos uma estilística e estética particulares da língua. “Trata-se de uma criptografia sem segredo e de uma telegrafia sem pressa. Apenas o essencial é expresso. Assim, no chinês antigo, a poética e a economia coincidem”. Em vez de estabelecer fronteiras entre a direita e a esquerda, o discurso democrático de esquerda deveria se abrir para transições, fluir em conceitos que permitam agregar, exatamente como a língua chinesa permite, novos significados. O povo se distanciou da esquerda. Como recuperá-lo? Pela língua.
A esquerda precisa encontrar um lugar discursivo novo como o do mar, como veem os chineses, um lugar de inesgotável transição, para que possa ser visto por aqueles que são iludidos pelo discurso de direita como “uma transição do limitado para o inesgotável e abrangente”. Assim, o mar ensina a esquerda a ser menos esquerdista e mais zen-budista. Adaptar-se a um mundo que está caminhando para a extrema-direita precisa de um esforço de iluminação (que os orientais chamam de Satori), de transição onde se adapta às necessidades da população, mas se busca uma alternância das coisas. Primeiro os direitos, a cidadania; depois o trabalho. Como propõe a filosofia oriental, como o mar, não é algo abissal, a esquerda não é um caminho único, ela não é um ser, ela pode mudar seu rumo. As coordenadas mudam.
A esquerda pode estar se prendendo a princípios e regras do passado político e, por isso, fracassando em seu objetivo de conquistar o poder. A razão é que é um pensamento ativo a partir de um ponto de vista fixo. A filosofia chinesa ensina a ser o mais flexível possível, que a esquerda precisa hesitar um pouco mais para conhecer o mundo que a direita pretende conquistar – ou até já conquistou. Voltar ao cotidiano e não ficar às turras com um projeto de futuro, isso é o que a filosofia oriental quer ensinar a esquerda. O fato de que agora a direita tenha hegemonia não significa também que a terá para sempre. É por isso que Han diz que a visão da água lembrou a Confúcio “que não há uma ordem fixa sob o céu, nenhum estado permanente” (p. 146). Não foi exatamente esse o caminho da direita que, sem se orientar por regras imutáveis e gerais, facilmente soube se adaptar aos tempos atuais?
A esquerda precisa desterritorializar o discurso, desterritorializar a linguagem, pensar o pensamento além das formas fixas. É como a culinária do Extremo Oriente: a esquerda quer cortar em grandes pedaços a direita, desmembrá-la com uma faca afiada, espetá-la com o garfo da ideologia, mas isso aponta que ela tem um centro ainda sob o qual quer se mover. Deveria fazer como no Extremo Oriente, cortá-la em pedaços menores, separar seus atores como pedaços de legumes, reuni-los em combinações que não necessitem mais, no futuro próximo, necessidade de desmembrar com uma faca afiada, mas apenas envolver com os “pauzinhos da crítica”, como se comesse um sushi à beira-mar de Cidreira.
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Foto da Capa: Praia de Cidreira / Arquivo palácio Piratini