Não tenho muitos espelhos em minha casa. Não sei explicar o motivo para isso com exatidão, mas me dei conta desse detalhe — tão banal e, ao mesmo tempo, tão revelador — ao ler o poema Espelho, de Armando Severo. Foi como se, pela primeira vez, eu prestasse atenção à ausência: às paredes nuas, às portas que não devolvem rostos, ao cotidiano que se desenrola sem reflexo.
Talvez eu tenha evitado os espelhos não por descuido, mas por um certo receio — o de encarar não apenas o que sou agora, mas tudo o que se acumulou em mim com o tempo. Como sugere o poema, há borrões, cópias, versões desbotadas de nós mesmos que vamos guardando sem notar. O espelho, então, deixa de ser um objeto e passa a ser um território sensível, onde cada olhar pode ser uma descoberta… ou uma ferida.
Desde a leitura, venho pensando na função dos espelhos — e na falta que talvez me façam. Não por vaidade, mas por uma necessidade íntima de reconhecer o que se tornou invisível. Talvez eu precise também aprender a olhar além da superfície e encontrar, naquilo que já fui, as pistas do que ainda posso ser.
A poesia de Armando Severo não apenas reflete — ela provoca. Pergunta: “Esta imagem que me devolves é verdadeira?” — e, com isso, desafia as certezas que nos acostumamos a carregar. Em Espelho, os versos funcionam como frestas por onde entra uma luz nova, revelando o que costuma escapar à visão apressada. Cada poema é uma tentativa de ir além da moldura, de alcançar o avesso da imagem, o que pulsa por dentro.
Num tempo em que a correria dos dias nos isola e o pertencimento se esgarça, Espelho nos reconecta. Ao falar de si, o eu-lírico acaba dizendo sobre todos nós. Há algo de universal em sua maneira de explorar as identidades fragmentadas, os sentimentos que não ousamos nomear, os desejos que ficam à margem. Com delicadeza e firmeza, ele nos conduz por entre dúvidas, memórias e silêncios.
Publicado pelo selo Invencionática da Editora Bestiário de Porto Alegre, o livro de Severo se divide em três partes: Reflexo, Projeção e Refração. Cada uma delas amplia a metáfora do espelho, como se o poeta conduzisse o leitor por camadas sucessivas do ver e do ser visto.
Armando Severo constrói, assim, um livro em que a arquitetura dos poemas dialoga com a própria estrutura da obra. Espelho não é apenas um título: é o eixo sobre o qual tudo gira. E o que se vê, ao fim da leitura, não é um reflexo fechado, mas uma imagem em movimento — feita de palavras, de fendas, de silêncios e de possibilidades. Seus versos tocam suavemente — e, ainda assim, deixam marcas. Há lirismo, há inquietação, há desejo. E há, sobretudo, essa busca: ver o que não está visível, dizer o que ainda não se disse.
Ler Espelho é aceitar esse convite ao desassossego e à reinvenção. Ao final, ficamos com a sensação de termos atravessado algo íntimo — como se, por um instante, tivéssemos nos olhado nos olhos de verdade. E talvez essa seja a maior força do livro: devolver ao leitor não apenas sua imagem, mas a coragem de reconhecê-la.
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Foto da Capa: Freepik