Nosso sistema tributário, apelidado pelo grande jurista Alfredo Augusto Becker, de Manicômio Jurídico Tributário, serviu até hoje para criarmos para uma parcela mínima dos brasileiros um paraíso fiscal disfarçado. Nele dirigimos grandes benefícios fiscais a muito poucos, em detrimento daqueles que não tem nenhum poder, e muitas carências, os pobres e a classe média assalariada. Além disso, apresenta-se confuso, desnecessariamente complexo, exigindo estruturas operacionais dispendiosas, e onerando a economia (as pessoas) com tributos aplicados mais de uma vez sobre o mesmo fato gerador. As PECs 45 ou 110 são mais uma tentativa de se reformar esse cruel sistema, que faz do Brasil um dos países mais caros e desiguais do mundo, porque sem Justiça Tributária, não há justiça social e não há progresso econômico. A
tributação é a forma pela qual o Estado cobra dos seus cidadãos para lhes devolver serviços. Se tal forma, quantitativa e substancial, é injusta, o Estado é injusto – ora, é simples, a riqueza é injustamente cobrada e distribuída e nada poderá ser feito para se ter uma nação equilibrada.
Ainda que a Reforma aprovada dias atrás, na Câmara dos Deputados, praticamente se restrinja às atividades econômicas decorrentes do consumo, e que deixe em segundo plano uma revisão mais profunda e larga quanto à renda e patrimônio, mesmo assim, mais uma vez, quando a reforma se aproxima, forças políticas desinteressadas em um sistema tributário simplificado e claro surgem para lambuzar os projetos, criando factoides, mentiras e distribuindo-os nos modernos e digitais meios de manipulação das opiniões. Por quê? É que mesmo sendo parcial, não adentrando como deve para os fins de justiça tributária nas questões de renda e patrimônio, trata-se de um primeiro e importante passo.
Há interesses legítimos que entendem que a reforma poderia ser outra, mais detalhada, ou até mais rigorosa. Entendo, aqui, que como tratamos de uma emenda constitucional, um ensaio da sua regulamentação já poderia ser apresentado; mas esperar tanta transparência, ou planejamento, do nosso legislador e quem dele se socorre com muito dinheiro, seria um “exagero” meu. Considerando ainda que o esforço para fazer passar a PEC atual já é gigantesco, pergunto-me se teríamos condições de fazê-la andar juntamente a um esboço regulatório infraconstitucional. Não. A oportunidade é única.
Em qualquer reforma que se repute decente, além da simplificação e esclarecimento do sistema, será necessário inverter a gangorra, porque ela hoje pende contra os mais pobres – isso é justo, é ético, é moral, é reparador e deverá ser legal. Este panorama do reequilíbrio da gangorra, em qualquer situação, também atinge aos municípios mais ricos (assim como às pessoas naturais) que poderão perder mais, ainda que estudos importantes, como os do IPEA e da CNM, demonstrem que nem 1% dos municípios perderão. Tenhamos em mente, então, que a PEC, quanto aos municípios que poderão perder, prevê um largo período de transição, de 40 anos (creio que nós não estaremos aqui para ver o final da obra), a fim de mitigar eventuais danos àquela minoria que terá prejuízos.
Veja-se que a regra de transição da PEC 110 prevê que, nos primeiros 20 anos posteriores à implementação do IBS (previsto para iniciar em 2027 se a PEC for aprovada em 2023 e regulamentada em 2024), todos os entes federados continuarão recebendo, pelo menos, o mesmo valor de receita que no ano base anterior à reforma (atualizado pela inflação), e que as novas regras de distribuição se aplicariam, portanto, apenas sobre o montante do IBS que crescer acima da inflação, fruto do crescimento econômico (decorrente também da reforma). Com isso, nenhum município terá queda real de arrecadação nos primeiros 20 anos da reforma.
Ademais, estudos demonstram que nenhum estado e apenas 16 municípios chegarão ao quadragésimo ano da transição com uma receita menor que hoje. Foi por isso também que o texto original da PEC 110 foi alterado, para criar o IBS dual. Eu, agora muito pessoalmente, reputo covarde o sistema tributário que temos. Pessoas com patrimônios absurdos, adquirindo e transferindo bens sem tributação, ou com tributação ínfima, alocando suas rendas em verbetes sobre os quais não incide tributação, ou incide alíquota baixíssima, e todos esses pagando muito menos, proporcionalmente, sobre o consumo, do que aqueles pobres que adquirem uma garrafa de refrigerante, um botijão de gás, paga a conta da luz, ou a do telefone, e que não tem patrimônio algum, é vergonhoso.
Repiso: mais uma vez, aproxima-se a reforma e muitos – profissionais, corporações e organizações políticas de toda ordem – surgem se opondo. Mas esses, salvo melhor juízo, geralmente defendem interesses próprios ou daqueles a quem o ex-presidente da OAB federal, Dr. Raymundo Faoro, na sua magistral obra “Os Donos do Poder”, chamou de O Patronato Político do Poder. Opõem-se à reforma aqueles que poderão ser um pouquinho mais tributados em seus patrimônios, e que sempre, desde há 500 anos, beneficiam-se de um sistema perverso. A reforma – que é apenas parcial (porque não cuida como deve da justiça tributária) – é um passo fundamental para que o Brasil caminhe para uma condição civilizada. É aceitável a ideia de que a reforma, nos termos da PEC, realmente cause problemas, mesmo que ela preveja remédios no período de transição e que o objetivo seja recuperar eventuais perdas no médio prazo. Como toda obra política humana, nunca, ou raramente, teremos um diploma jurídico perfeito, pronto e acabado. Todavia, como toda conquista, correções de rumo poderão ser feitas, e é um risco que vale viver.
Agora, já aprovada a PEC na Câmara dos Deputados, o mesmo resultado é esperado e provável no Senado. Depois, a luta continuará, para que na regulamentação infraconstitucional, a pretendida simplificação e justiça do novo sistema, seja mantida e ampliada quanto à tributação da renda e do patrimônio. Por fim, dificilmente o resultado dificilmente será pior do que esse arremedo de sistema que temos hoje – se for, teremos realizado a proeza de arruinar o pior sistema tributário do mundo democrático. E seguiremos entre os primeiros lugares, na desonrosa lista dos países com maior desigualdade social e de renda do planeta, segundo o novo estudo lançado pelo World Inequality Lab (Laboratório das Desigualdades Mundiais), da Escola de Economia de Paris.
*Rodrigo Westphalen Leusin é advogado
Foto da Capa: Agência Brasil