Um barco lotado de gente naufraga no Mar Mediterrâneo causando o afogamento de muitas mulheres e crianças. Famílias inteiras tentam cruzar um rio perigoso e lamacento na fronteira do México com os Estados Unidos. Os poucos que conseguem, são presos e tratados com violência pelos guardas de fronteira. Refugiados do Oriente Médio são agredidos por civis, policiais e até repórteres na Hungria. Um homem cai para a morte de um avião que decola do aeroporto de Cabul, no Afeganistão. E assim por diante. Seguidamente ficamos chocados ao ver imagens de pessoas que tentam deixar a suas regiões e países sendo agredidas, presas ou mortas.
Alguns números
Isso parece acontecer longe de nós. O que em parte é verdade. O mundo vive uma crise de refugiados, as mais visíveis na Europa e nos Estados Unidos, mas em muitos outros lugares também. E os países estão tendo muita dificuldade de lidar com ela. Segundo a Agência da ONU para Refugiados (UNHCR na sigla em inglês) existem 130,8 milhões de refugiados no mundo.
O orçamento somente da UNHCR é de cerca de 10 bilhões de dólares, sendo que muitos países dispõem de verbas próprias para acolher refugiados. São recursos significativos. Mesmo assim, está claro que não estamos lidando de maneira apropriada com o problema. Além dos desafios econômicos e sociais de se acomodar tanta gente, ainda estamos vendo um crescimento da xenofobia e do racismo, alimentados principalmente pela ultradireita nacionalista.
Oficialmente, entidades como a ONU definem como refugiados aqueles que fogem de conflitos armados ou de perseguições políticas. Mesmo assim muitos tem dificuldade para ter esse “status” reconhecido. Parte deles, incluindo quase todos que buscam melhores condições de sobrevivência econômica, são classificados como imigrantes ilegais.
Refugiados do clima
Não bastasse a crise criada pelos refugiados “tradicionais”, há um outro tipo de refugiado, cujos números estão crescendo rapidamente: os “refugiados do clima”. Pessoas que estão sendo e serão deslocadas pelas mudanças climáticas que, como eu já descrevi em diversas colunas aqui na Sler, vão tornar muitas áreas do mundo inviáveis para a habitação permanente.
Há um contraponto importante aqui. Algumas agências da ONU para refugiados defendem que o uso do termo “refugiado” seja mantido restrito aos que fogem de conflitos, perseguições ou violência.
Alegam que o uso muito abrangente dessa designação pode dispersar e enfraquecer o apoio aos “verdadeiros” refugiados. É um ponto de vista que deve ser considerado.
Talvez no futuro encontremos um outro termo para caracterizar as pessoas deslocadas pelas mudanças climáticas. Talvez “migrantes do clima”. Mas elas não podem ser esquecidas. Seu grau de sofrimento físico e mental pode ser tão grande quanto ao dos outros refugiados. Por isso, por ora, e não sou apenas eu, vou continuar a usar o termo “refugiados do clima”.
Mais números
Segundo um estudo de outubro de 2023 do Parlamento Europeu, 378 milhões de pessoas foram deslocadas de suas casas por causa de eventos climáticos desde 2008, com um recorde de 32,6 milhões em 2022. Muitas delas, principalmente nos países em desenvolvimento, não receberam apoio para reconstruir suas casas, seus negócios e suas vidas. E estamos apenas no início desse fenômeno.
As estimativas atuais (citadas pelo mesmo estudo) são de que, no pior cenário (ou seja, sem redução das emissões de gases de efeito estufa – que está rapidamente se transformando no cenário mais provável) 1,2 bilhões de pessoas serão deslocadas até 2050 por eventos climáticos ou ameaças ecológicas. É um número assombroso. São inimagináveis o esforço e o custo econômico que os países terão que fazer para lidar com esse contingente de pessoas deslocadas.
Causas das migrações
No cenário que considera um aquecimento de até 3 graus centígrados2, que está se delineando como muito provável, as pessoas terão que abandonar suas casas pelo efeito específico ou combinado de vários fenômenos. Condições progressivamente áridas (no Brasil, recentemente, definiu-se pela primeira vez uma área do Nordeste como apresentando condições de deserto) serão a causa mais frequente, pois sem água não há vida. Mas inundações muito frequentes, aliadas ou não à subida do nível do mar, também vão inviabilizar a permanência das pessoas nos lugares onde moram.
A Ásia e a África são considerados os continentes que terão o maior número de pessoas vulneráveis, por exemplo, à desertificação. A América do Norte, a América do Sul, a região do Mediterrâneo e o sul da África serão mais afetadas por secas e incêndios. As regiões subtropicais e tropicais de todo o mundo (o que inclui o Brasil) devem ser mais vulneráveis à queda da produtividade agrícola, pela degradação dos solos e a perda de áreas cultiváveis, resultantes da combinação da subida do nível do mar e a maior intensidade de tempestades e inundações.
Os Outros
Por outro lado, a maioria das estimativas e cenários se refere a grandes movimentos migratórios, deslocamentos envolvendo muitas pessoas de uma região, ou país, ou mesmo de um continente para outro.
Há, entretanto, um outro tipo de refugiado do clima que vive muito mais perto de nós. Você provavelmente conhece alguns deles, pois estão ficando cada vez mais numerosos no Brasil, e no mundo. Eu nunca tinha me dado conta disso, até a tragédia de 2022 em Petrópolis, no Rio de Janeiro, onde moro.
Me refiro às pessoas que são obrigadas a deixar suas casas e se deslocar até um local próximo, dentro da mesma cidade, ou no mesmo bairro, como tem sido comum em muitas tragédias climáticas do Brasil e do mundo, e está se repetindo na região Sul do Brasil.
O pessoal da “24”
Aqui em Petrópolis, há uma comunidade tradicional na cidade chamada 24 de maio (por conta do nome da rua que corta o bairro), é uma comunidade tradicional da cidade. Todo mundo a chama de “24”. Pois a “24” existe há muitas décadas. E conta com boa infraestrutura, com água, luz e transporte público.
Está convenientemente localizada no centro da cidade, o que facilita o acesso dos seus moradores a seus locais de trabalho. A maior parte das famílias que lá moram estão ali há gerações. Quase todos se conhecem, e se ajudam. Mas a “24” está situada em uma área de risco. No temporal que atingiu a cidade em fevereiro de 2022 o bairro foi severamente afetado, principalmente com deslizamentos de terra. Pessoas morreram, e muitas perderam ou tiveram suas casas condenadas.
Assim muitos foram obrigados a deixar suas casas, onde viveram toda sua vida, e agora estão espalhados pelo município e arredores, a maioria vivendo em condições precárias e sem saber como será seu futuro. Pessoas assim perdem suas referências. Não tem mais os amigos e parentes próximos, não se sentem acolhidas no novo lugar onde moram. Se os adultos já sofrem com isso, imagine as crianças.
Refugiados locais?
Os moradores retirados da “24” não entrarão nas estatísticas como “refugiados”, ou mesmo migrantes. Nem serão tratados como tal. Mas sofrerão consequências econômicas, físicas e psicológicas análogas as dos demais.
É bem verdade que, no caso do Rio Grande do Sul, a construção de quatro cidades provisórias para abrigar parte dos desabrigados está sendo acompanhada pela Organização Internacional para as Migrações, ligada à ONU, que tem escritório em Porto Alegre, e talvez entre nas estatísticas. Mas ainda assim é um número pequeno frente ao total dos atingidos.
Na falta de outro termo, poderíamos chamá-los de refugiados, ou migrantes “locais”. Mas o fato é que eles são atingidos tanto quanto os refugiados tradicionalmente reconhecidos. E nossa capacidade de lidar com eles tem sido muito ruim. Torço para que no Rio Grande do Sul seja diferente, mas aqui na Serra Fluminense, as pessoas ainda estão esperando as casas e obras prometidas após as chuvas de 2011!
Você
Portanto, prepare-se para receber, cuidar e ajudar os refugiados do clima, sejam eles de outro país, de outra região ou mesmo da sua cidade. É importante que você se engaje nesse esforço, preparando sua comunidade, pressionando os governantes e demais políticos, fiscalizando o cumprimento das novas leis e normas que serão essenciais para seu bem-estar. Senão por outro motivo, porque talvez você venha a ser um deles…
1Eu apresento aspectos complementares e mais referências sobre o assunto no meu livro “Planeta Hostil”, que também descreve de forma abrangente os processos de degradação ambiental do planeta. Pode ser adquirido em livrarias de todo o Brasil, no site da editora Matrix (www.matrixeditora.com.br) ou na Amazon.
2Um livro que traz uma interessante discussão sobre os refugiados do clima é o Inhabitable Earth – Life After Warming, de David Wallace-Wells (há uma versão em português: A Terra Inabitável – Uma História do Futuro, com tradução de Cássio de Arantes Leite, lançada em 2019 pela Companhia das Letras) O livro pode ser comprado na Amazon.
Observação final: Para vídeos e textos adicionais confira também meu Instagram @marcomoraesciencia.
Foto da Capa: Lauro Alves | Secom RS
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