Vendido por seu caráter inovador e como panaceia para os males crônicos do Rio Grande do Sul, o Regime de Recuperação Fiscal assinado pelo Governador Eduardo Leite ao final de seu primeiro mandato é agora posto em xeque justamente por quem deverá conduzi-la na nova gestão, a secretária da Fazenda, Pricilla Santana, recrutada por Leite junto a Subsecretaria de Relações Financeiras Intergovernamentais da Secretaria do Tesouro Nacional (STN), posição graduada no escalão federal.
Frente a uma comissão da Assembleia Legislativa, a secretária despejou seus temores. Até agora restrito a reuniões na Secretaria da Fazenda e no núcleo do governo, o debate sobre a real situação financeira do Estado e as condições para o cumprimento das exigências do Regime de Recuperação Fiscal tem grandes chances de se tornar um problema político para o governador Eduardo Leite (PSDB), que, em campanha que lhe garantiu uma inédita reeleição estadual, disse que o problema da dívida estava equacionado.
Não estava, vê-se apenas seis meses depois. Em audiência realizada na Comissão de Finanças, Planejamento, Fiscalização e Controle da Assembleia Legislativa para tratar da situação do caixa, a secretária surpreendeu deputados presentes ao admitir que a trajetória da dívida está embicada e crescente. “Para cada real que eu arrecado, estou devendo dois”. A postura da secretária confirma a fama que dela fez o próprio Leite, ao convidá-la para a função, que de ela era “queixo-duro”. Parece que sim.
A mensagem dos números é a de que, desde 1998, apesar de todos os esforços e de todos os pagamentos, essa é uma dívida que tem se mostrado extremamente crescente”, afirmou a secretária. Ao apresentar gráficos e tabelas elaborados pela Fazenda e dados do Relatório da Dívida de 2022, a secretária expôs que o Estado é o que está na pior situação quando levada em conta a relação entre dívida consolidada e receita corrente líquida. Entre 2021 e 2022 a dívida do Estado cresceu 8,7%, alcançando, no ano passado, em valores nominais, R$ 93,6 bilhões (dos quais R$ 82,5 bilhões são devidos à União).
“Nossa relação ficou ainda mais comprometida a partir dos efeitos das leis complementares 192 e 194. O que já era preocupante, tornou-se absolutamente insustentável”, relatou Santana. Editadas no ano passado pelo governo federal, as duas leis limitaram as alíquotas de ICMS sobre combustíveis. Em março deste ano, a União anunciou um acordo para recompor parte das perdas de 2022 aos estados.
Na audiência, a secretária deu uma mostra dos argumentos dos quais o governo já lança mão em reuniões com técnicos da Secretaria do Tesouro Nacional (STN) para tentar renegociar os termos de adesão ao RRF e que, no Estado, serão utilizados como forma de tentar conter o desgaste político que virá com o detalhamento dos números. A estratégia é tentar vincular ao máximo a necessidade de um novo ajuste a fatores nacionais não previstos, e sobre os quais o Executivo gaúcho não tem controle.
Conforme a secretária, por exemplo, além da queda na arrecadação decorrente da limitação das alíquotas, a conta da dívida é impactada pelas altas expressivas na inflação e na taxa Selic, porque ambas influenciam o coeficiente de atualização monetária (CAM), utilizado na correção da dívida. “Controlar variáveis macroeconômicas, que são variáveis que não dependem dos esforços fiscais do Estado, é fundamental para voltarmos a ter uma trajetória descendente da dívida. Quando foi negociada a adesão ao Regime, o coeficiente estava negativo. Mas, em 2022, ele subiu muito. Estamos debatendo com a STN para revisitar esta questão do coeficiente”, justificou.
E o jogo não tinha virado, cobra Oposição?
Na audiência, contudo, os deputados Miguel Rossetto (PT), que propôs o debate, e Rodrigo Lorenzoni (PL), deram mostras de que a oposição deverá cobrar com força a alteração de discurso do governo e contrapor os argumentos usados pelo Executivo. “Foi vendido para a população que a questão da dívida estava resolvida, mas não está. O governo vendeu R$ 4,6 bilhões em patrimônio. A redução nos salários dos servidores, em função da não correção da inflação, foi de R$ 8 bilhões. Durante quatro anos, teve ICMS majorado, e isso não tinha a ver com o governo federal. Foram R$ 35 bilhões em receitas extraordinárias para sustentar um mandato”, afirmou Rossetto.
Lorenzoni lembrou que já havia previsão de queda na receita de impostos antes de o Estado aderir ao regime. “Nossa preocupação era com os termos do RRF. Já alertávamos que as condições manteriam a dívida impagável. No entanto, durante a campanha, ouvíamos que o jogo havia virado. Estamos descobrindo que não era aquilo. O que precisamos saber é se houve irresponsabilidade do governo. Se a busca pela adesão ao regime foi técnica ou foi política.”
O RRF é o modelo de renegociação da dívida idealizado pela União que teve a adesão do RS concluída em junho do ano passado, após negociações iniciadas na gestão do ex-governador José Ivo Sartori (MDB). Polêmica desde seu início, a adesão ao regime foi classificada pela primeira administração Leite como a solução possível para o equacionamento dos problemas financeiros do Estado e, até o início deste ano, o Executivo anunciava o ajuste nas contas como uma de suas realizações. Agora, contudo, o Estado pleiteia uma renegociação dos termos, sob o argumento de que as condições são muito duras e a dívida se tornará impagável em um período de até cinco anos.
A mudança de Governo é o que vislumbra o Estado como chance de renegociar os termos de sua adesão ao Regime de Recuperação Fiscal, inclusive dentro das tratativas da reforma tributária que vem sendo formulada pelo governo federal. A estratégia pretendida pelo Executivo gaúcho foi revelada pela secretária estadual da Fazenda, que enfatizou: “Temos uma janela, que é a janela da reforma. Se conseguirmos colocar tudo, pegar a janela da reforma e construir uma solução federativa para todos, dar uma alargada no escopo, a gente consegue renegociar o RRF dentro da reforma. Esta é a estratégia que temos”, assinalou Santana. “Quando peço para que o RS tenha um quinhão no Fundo de Desenvolvimento Regional, porque isto é legítimo, ouço que já tivemos nosso quinhão no RRF. O que respondo é que dinheiro em cash não é a mesma coisa que dívida.
O governo federal, de sua parte, publicou no final da semana passada um decreto que altera regras do Regime de Recuperação Fiscal dos Estados e do Distrito Federal (RRF). Dentre as mudanças, o ato alonga prazos para o cumprimento de exigências do Plano de Recuperação Fiscal pelos entes. Pela regra anterior, a apresentação de itens como projeções financeiras para o exercício corrente e os subsequentes e o detalhamento das medidas de ajuste fiscal deveria ocorrer no prazo de 30 a 180 dias contado da data de aprovação do pedido de adesão.