De uns tempos para cá, tenho me habituado a reler os meus livros, algo que há alguns anos eu não me permitia. Com tantos novos títulos sendo lançados frequentemente, não via razão para revisitar uma escrita que já conhecia. Preferia explorar o inédito, em busca de informações e experiências ainda desconhecidas. No entanto, essa nova prática me trouxe surpresas e redescobertas valiosas. Uma delas foi a releitura de A Vegetariana, da autora sul-coreana Han Kang, lido pela primeira vez em 2021. Coincidentemente, uns dias após a minha releitura, soube que a autora recebeu o merecido Prêmio Nobel de Literatura de 2024.
O interesse por essa releitura não surgiu por acaso. A vontade de revisitar essa obra foi despertada por uma leitura recente: A Política Sexual da Carne, de Carol J. Adams, que me levou a refletir sobre a conexão entre o consumo de carne e a exploração do corpo feminino. A teoria de Adams se revela claramente em A Vegetariana, onde o foco vai além do simples desinteresse da protagonista em comer carne. A narrativa explora toda a degradação que a personagem enfrenta em decorrência dos valores machistas daquela sociedade. Vemos isso já nas primeiras páginas, sob a perspectiva do marido: “Conforme minha expectativa, ela desempenhou a função de esposa sem grandes dificuldades. Todos os dias, acordava às seis da manhã e preparava arroz, sopa e um pedaço de peixe”.
Quando a personagem decide não ingerir mais animais mortos, tirando da geladeira todos os cortes armazenados, a família inteira se opõe. Depois de obrigar a filha a comer um pedaço de carne, enfiando-o à força em sua boca, o próprio pai, militar ex-combatente no Vietnã, a agride com um soco no rosto. Esse ato a leva à tentativa de suicídio, cortando os pulsos na frente dos familiares presentes. Depois disso, há uma sequência de fatos que mostram o quanto ela é desprezada pelos familiares, como o abandono do marido e o abuso de um familiar, que culmina em uma internação numa clínica psiquiátrica.
Segundo a teoria de Adams, o consumo de carne pertence ao domínio masculino. O patriarcado se utiliza dessa ideia, tratando também os corpos femininos como pedaços de carne. Às mulheres, assim como aos animais, resta apenas o dever de servir aos desejos masculinos, oferecendo a eles a sua própria carne. Analisando dessa forma, percebemos o quanto isso está implícito no nosso cotidiano, onde o feminicídio ainda é um sério problema. A mulher, vista como objeto, é comparada ao animal, podendo ser consumida para satisfazer o seu proprietário.
A Vegetariana não é uma narrativa sobre hábitos alimentares, mas sobre uma mulher que, assim como muitas outras, não tem voz dentro da sua família e sociedade. Em nenhuma das três partes que compõem o livro, ela narra os próprios atos. Sua vida é contada pelo companheiro egoísta, pelo cunhado depravado e pela irmã que demora a perceber que também é uma vítima das circunstâncias. Cada um deles a observa e interpreta, mas nunca a compreende verdadeiramente, ressaltando a falta de voz e o isolamento que ela enfrenta. Com o passar do tempo, ela passa a tratar a si mesma como um vegetal — talvez a maneira como ela tenha sido vista pelos outros a vida inteira.
Reler A Vegetariana sob a ótica proposta por Adams foi um golpe avassalador. A análise desse livro a partir de uma teoria feminista não apenas acrescentou uma nova camada de entendimento à leitura, mas também revelou o quanto nossas interpretações são influenciadas pelo momento em que vivemos. Na minha primeira leitura, o que mais me impressionou foi a intensidade da narrativa e a desconstrução de uma personagem que desafia as convenções sociais. Desta vez, percebi com mais clareza a interseção entre os temas do controle sobre o corpo feminino e as opressões estruturais sofridas pelas mulheres de diferentes sociedades, todas apoiadas em dinâmicas semelhantes de poder e dominação.
Essa experiência de releitura me fez refletir sobre a importância de revisitar obras literárias que, de alguma forma, me marcaram. O que eu busco hoje em cada releitura é justamente esse diálogo entre quem eu era, quem sou e o que a obra tem a me oferecer de novo. A literatura tem essa força de nos fazer repensar a vida e, como estamos em constante mudança, cada nova leitura é uma oportunidade de aprendizado.
Foto da Capa: Han Kang / Divulgação
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