Minha mãe, Coralia, costumava pontuar nossas conversas sempre que tomavam o caminho da fofoca. Ao fazer isso, repetia uma preciosidade que ouvia da sua avó paterna, chamada Deotília, minha bisavó, professora, diretora de escola e uma pessoa muito respeitada na Jaquirana, onde sempre morou: “Temos dois olhos, dois ouvidos e uma boca. Sinal que é mais prudente ver e ouvir do que falar”.
Já meu pai, Nestor, sempre que criticávamos alguma atitude esquisita de um amigo dele, uma desatenção, uma grosseria, dizia com um sorriso leve e irônico: “Minhas filhas, as pessoas não são parelhas”. A observação certeira foi logo adotada por nós. Não somos parelhas!
Minha avó materna, que todos chamavam de Sinhá, era forte, decidida, levava a grande prole debaixo das asas com firmeza e dava bronca sempre que necessário. Gostava de ouvir rádio, acompanhar novelas, noticiário, futebol. Com a chegada da televisão, passou a ver tudo na telinha, sempre comentando. Em uma tarde entrei na sala e ela, mergulhada em um filme na TV, me falou, com os olhos brilhando, que tinha vontade de fazer uma viagem de navio, atravessar o oceano, do Brasil para a África. Sonhamos juntas, enquanto ela passava um café.
Esta mesma avó era justa e solidária. Cheguei da escola no final de uma manhã e uma senhora pobre, que vivia de esmolas, a quem todos chamavam Patrola, estava sentada à mesa para almoçar com a gente. Cheia de nojo, eu avisei que não sentaria com ela porque cheirava mal. Dona Sinhá não se comoveu um milímetro com o meu protesto: “Se tu ficar um dia sem comer, não vai te fazer falta porque és bem alimentada”. Assunto encerrado e uma lição para a vida toda.
Meu avô materno, Juvenal, depois de ouvir as broncas frequentes que a vó nos dava, com razão porque éramos um bando de netos impossíveis que ficavam com eles, nos chamava, dava uns trocados e dizia: “Comprem uns mandolates na venda para adoçar a vida”. E lá íamos nós, felizes!
Raízes que fortalecem e ensinam
Este mesmo avô, filho da Deotília, dizia: “Não morem em encosta de morros, nem em beira de rios. Um dia o morro pode desabar e o rio avançar para além das suas margens”. Lembrei muito dele nesta tragédia recente que vivemos. Era um sábio, mas não se reconhecia assim. E fazia uma brincadeira linda com o meu nome: “Marlei – Duas forças, uma da natureza, o Mar. A outra, dos homens, a Lei”. Adepto do espiritismo, ele achava Marlene, minha irmã, e eu muito inteligentes. Dizia que só podíamos ser a reencarnação de Rui Barbosa, o que provocava muita briga porque não gostávamos da comparação.
Nossos enfrentamentos eram frequentes. Mas foi com ele e com um irmão dele, Hortêncio, que chamávamos de tio Tencinho, que tive meus primeiros contatos com jornais, revistas e rádio, o que me entusiasmava muito.
O jardim e a louça dos avós paternos
Como fui criada pelos avós maternos, convivi pouco com os avós paternos, mas me encantava a maneira como o meu avô cuidava da horta, especialmente da plantação de morangos, e do jardim da casa. Quando fizemos nossa primeira viagem para a Europa, Marlene e eu encontramos muitos jardins do nosso avô por lá. Ele conversava bastante com a gente quando nos encontrávamos e fazia muitas perguntas sobre a nossa vida. Da minha avó paterna, o encantamento vinha da louça antiga que ela guardava em uma cristaleira na sala e da maneira impecável como arrumava uma mesa.
Das minhas tias e tios, irmãos da minha mãe, as lembranças são muitas, especialmente da Clori e da Dalva, que praticamente também me criaram, junto com muitas primas e primos. Elas sempre me estimularam muito para a vida além das portas de casa. Clori achava meus cadernos da escola caprichadíssimos. E Dalva fez a minha primeira fantasia de carnaval. Não tenho dúvidas que muito da minha determinação, curiosidade, sensibilidade e do olhar para o outro vem destas relíquias que as famílias cultivavam e que experimentamos nos campos de cima da serra, entre Jaquirana, a fazenda do meu pai perto de Cambará do Sul e São Francisco de Paula.
Foto da Capa: Freepik
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