Muito se tem falado, nesta contemporaneidade, acerca das representações sociais relacionadas à velhice e ao envelhecimento. Isso talvez se deva, em primeira instância, ao aumento da expectativa de vida das pessoas, o que, junto com a diminuição das taxas de natalidade pelo mundo afora, teve como efeito o aumento relativo da presença de idosas e idosos na cena social – dos serviços de saúde às agências de viagem, igrejas, partidos políticos… Há mais idosos, portanto é natural que sejam mais visíveis e que gerem mais assunto.
De minha parte, permito-me aludir a esse assunto por uma razão muito pessoal: aos sessenta e nove anos recém-completos, começo a finalmente me convencer que, como se havia previsto (sem que eu tivesse até então levado muito a sério), a velhice chegou. Dentre as tantas facetas dessa tomada de consciência, vou me permitir compartilhar, aqui, uma das que me parece mais significativa – a renúncia. Algumas fichas que começam a (finalmente) cair têm me chamado consistentemente a atenção para esta vivência associada ao envelhecimento: a necessidade de considerar o advento de algumas perdas, e nesse contexto, abrir mão de umas tantas coisas nessa existência. Renunciar.
Permitam-me começar por um ponto menos óbvio, porém bastante significativo na bolha profissional e existencial em que tenho vivido até aqui: a renúncia aos livros que não li, até deveria ter lido, mas não vou mais ler. Aqui e ali, nós nos pegamos pensando: “Deus do céu, há quanto tempo venho me programando para ler ESTE livro, o que constitui lacuna grave! Preciso ler o danado!” Sim, preciso… mas preciso ler OUTROS, e como a ilusão do tempo elástico/infinito se foi (outra renúncia…), ESTE de que falamos não será mais lido. Pelo menos não nesta encarnação, diriam alguns, mas, de minha parte, não cogito seriamente dessa possibilidade de outra encarnação, então…
O tempo da aposentadoria se aproxima, e em seu bojo, algumas mudanças estruturais ocorrerão. O contexto habitual de trabalho será foco de uma dessas mudanças, mesmo que muitos engrenem uma “segunda vida” e iniciem outro percurso profissional. Mas isso não elude o fato de que o contexto anterior, de décadas, ficará para trás. Será preciso renunciar a um coletivo de pessoas, às vezes a uma saleta e seus utensílios, um percurso diário casa-trabalho-casa (mesmo com os abalos recentes da pandemia que parece tão próxima e tão longínqua), um certo lugar social.
O famoso ”silêncio dos órgãos”, aquela forma de viver em que não se precisa recordar, a todo tempo, que se tem uma coluna vertebral, rins, fígado, próstata, essa vivência que não se imaginava o quão privilegiada era, já era… Torna-se necessário renunciar a esse jeito privilegiado de ser e estar no mundo. Aqueles mais afeitos às piadas e gracejos aludem à chegada da Idade do Condor – não o pássaro majestoso, mas o tempo em que se está “com dor” em várias partes do corpo. Adeus, “silêncio dos órgãos”…
Ainda nesse âmbito das vivências corporais, há perdas consideráveis vividas e revividas a cada manhã, diante do espelho, naquele momento em que levantamos ainda com a cara (ainda mais) amassada – olhando bem, cada vez mais amassada, o que não é amenizado pelo que resta dos cabelos…
A foto que todos nós levamos no espaço mental de nossas histórias, foto onde constam nossos relacionamentos, parcerias, parentescos, amores e desamores – essa foto interna começa a ter cada vez mais claros os espaços dos que vão partindo. É preciso lidar com a renúncia à crença de que esse quadro fosse perdurar indefinidamente…
A essa altura, você que veio até aqui, nessa leitura, talvez esteja pensando se esse rol de depoimentos começará a findar nesse registro de perdas e renúncias, sem aludir, de forma mais “positiva”, “madura”, “feliz”, a alguns ganhos que deveria se considerar nesse balanço contábil existencial. Há efetivamente ganhos – até já imprimi minha tarjeta plastificada que me permite aceder a vagas de estacionamento reservadas para nós, idosos… Estarei dentre os primeiros, nas filas, vida afora… Noves fora alguma leve ironia, aqui, posso efetivamente imaginar alguns aspectos positivos nessa quadra da existência – a começar pelo próprio fato de ainda conseguir articular “a” com “b” na elaboração desse depoimento, de ainda estar vivo. Mesmo considerando-se que, para muitos desse grupo, isso não seria propriamente um bônus, e sim um ônus… Mas o ponto que queria compartilhar aqui não vai na direção de uma mensagem edificante que me permita polir uma identidade social de “idoso bem resolvido”. Talvez até tenha perdido de vez essa chance… O ponto que queria aludir aqui é o quanto renunciar reveste, atravessa, caracteriza a experiência do envelhecimento, num processo paulatino que tem dinâmica própria.
Rumo ao estágio em que as renúncias cessarão, quando aquele apagamento da foto a que se fez alusão, acima, agora ocorra fora de nosso conhecimento – radicalmente fora, porque desse apagamento não tomaremos conhecimento. Apagados que fomos. E aí a renúncia que vivenciamos tem seu último ato como herança que se lega aos que ficam – instados, muitas vezes a contragosto, a renunciar àquele ou àquela que não vivencia mais nada.
A mensagem aqui não se pretende depressiva e tristonha. Apesar de, para alguns, parecer ter sido concebida nessa clave. O ponto é somente o compartilhamento da ideia-mãe de todas as renúncias – a renúncia à ideia onírica de uma fonte da juventude de onde regurgita perenemente o Néctar da Juventude Eterna. O complexo vitamínico de última geração, por mais que se alardeie nas redes sociais, não será mais que um simulacro desse néctar perdido, das ilusões perdidas, do fechamento das cortinas.
Vamos elevar o ânimo: que se tire proveito do penúltimo ato, sempre uma proteção esperançosa em relação ao último. Mesmo que, aqui e ali, o mundo ao redor pareça conspirar na direção de nos desencorajar a persistir, de nos induzir a renunciar a viver o que resta viver.
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Foto da Capa: Gerada por IA.