Meu pai foi executivo da Rede Ferroviária Federal no Rio Grande do Sul e lutou a vida inteira pelos trens, que amava com todo o seu coração. Lembro (décadas de 60/70), como se fosse hoje, de quando ele chegava em casa extenuado de argumentar contra o lobby do asfalto, de construção de rodovias para o transporte das safras agrícolas em detrimento das ferrovias. Um erro que hoje estamos sentindo em toda a sua dimensão.
Uma via férrea é altamente permeável, pois construída com dormentes e trilhos sobre o solo, só parcialmente coberto por uma espécie de brita – funciona como lastro a fim de diminuir o impacto do peso das cargas sobre os trilhos. É totalmente diferente do asfalto, quase nada permeável, que só faz jorrar a água pela superfície e pelas bordas até os locais mais baixos. Ali se acumula e pode provocar inundações. E é 100% condicionado ao petróleo e emissor de gases tóxicos.
Na época, o principal argumento do meu pai era econômico, de evitar a dependência do petróleo, o aumento de custos do transporte – a questão ambiental ainda não sobressaía. Mas o plano de crescimento econômico rápido do presidente Juscelino Kubitschek, que prometera “50 anos em cinco” já imperava. O sucateamento das nossas ferrovias se revelava irreversível. O asfalto foi avançando de tal forma no Brasil que, hoje, não só estradas como todo o espaço urbano é desenhado em função dos carros.
É hora de rever essa lógica. A arquiteta e urbanista Raquel Rolnik fez uma brilhante defesa do sistema ferroviário ao canal Meio: “Podemos ter outro modelo de cidade, com trilhos de trem, um modal de alta capacidade. O trem pode rolar sobre uma base inundável sem interferir nela e faz muito mais sentido do que um monte de caminhão, ônibus e carro”. E alerta: “Coloca-se um rio em um canal para se construir um sistema viário, que provocará o aumento das emissões de gases tóxicos que, por sua vez, contribuirá para a ocorrência de eventos climáticos extremos. Um ciclo vicioso no qual todos estão envolvidos e sem saber como sair. Ou repensamos o modelo ou ficamos morrendo nas enchentes e nos deslizamentos. Tudo é uma questão de escolha.” [i]
Eu viajei a trabalho para a Austrália[ii] em 2000, ocasião em que o Brasil comemorava 500 anos de seu descobrimento. Voltei consternada. Foi como um soco ver in loco um país de apenas 200 anos, construído basicamente por prisioneiros ingleses enviados àquele deserto gigantesco, ter feito mais do que nós em menos da metade do tempo. Influenciada pelo amor aos trens do meu pai, fiquei não só impressionada como encantada com o sistema ferroviário australiano. Cobre o país de ponta a ponta, atravessa o deserto, liga cidades, transporta todo tipo de mercadorias e pessoas de forma eficiente, econômica e rápida. São 32.606 quilômetros de extensão ferroviária, o que a coloca em 9º lugar no mundo. Fiquei apaixonada também por Sidney, com sua belíssima baía e ruas com fileiras de árvores com luzinhas como se fosse época de Natal (há poucos anos, bares e restaurantes de rua aqui no Brasil adotaram esse estilo). E Melbourne com seus verdes e amplos campus universitários. A costa é paradisíaca, com piscinas naturais, construídas estrategicamente entre as rochas e o mar, para um banho tranquilo a salvo de ataques de tubarões.
Mas mesmo um país desenvolvido como a Austrália terá de repensar o modelo das suas cidades. Nos últimos cinco anos, também passou a sofrer inundações. É uma soma de fatores climáticos que está deflagrando essas tragédias. Em 2022, chuvas torrenciais em Sidney e outros centros urbanos pressionaram os rios no entorno e os alagamentos mataram dezenas de pessoas, obrigaram outras milhares a deixarem suas casas e outras tantas ficaram ilhadas no aguardo de resgate. O rio Wilsons, que atravessa Lismore, no norte de Nova Gales do Sul, atingiu uma alta histórica de 14,4 metros. O Guaíba, que banha Porto Alegre, atingiu agora uma alta histórica também, com 5,35 metros.
As causas na Austrália e no Rio Grande do Sul são análogas. Fenômenos cada vez mais extremos do El Niño, que aquecem a superfície das águas do Oceano Pacífico. Rios atmosféricos (tipo uma estrada de umidade), que, em choque com um sistema de baixa pressão, são levantados no ar antes de despejar toneladas de água em muito pouco tempo (quanto mais a umidade estiver se acumulando, mais água jorrará). Solo já encharcado não dá conta de absorver as enxurradas. No Rio Grande do Sul somou-se as águas mais aquecidas também do Oceano Atlântico e um importante fenômeno de bloqueio atmosférico. “A forte massa de ar seco na região central do Brasil está ajudando a represar o avanço de frentes frias sobre o sul do país (daí bloqueio), contribuindo para as instabilidades que formam as pesadas nuvens de tempestade e canalizando a umidade vinda do norte para o RS”, explicou Desirée Brandt, sócia-executiva e meteorologista da empresa Nottus, especializada em consultoria meteorológica para negócios, ao jornal Gazeta do Povo. [iii]
“As mudanças climáticas – devido ao aquecimento global causado por gases do efeito estufa que lançamos na atmosfera – são a razão para que eventos extremos estejam se tornando mais frequentes e batendo recordes no mundo todo. Já aumentamos em 50% a concentração de gás carbônico – dióxido de carbono; aumentamos em quase 150 vezes a quantidade de metano, que é um gás muito poderoso para aquecer o planeta. E o planeta mais quente tem mais evaporação de água nos oceanos e você cria os eventos meteorológicos extremos. Eventos oceânicos mais extremos, como os três El Niños mais fortes do registro histórico (1992/93, 2015/16 e 2023/24). Todos os oceanos estão mais quentes. Então, essa é a causa de estarmos quebrando esses recordes em todo o planeta e no Brasil também”, explicou o meteorologista brasileiro Carlos Nobre, referência mundial para estudos ambientais e mudanças climáticas, em entrevista à Agência Brasil.[iv]
Para Kimberley Reid, pesquisadora PhD da Escola de Ciências da Terra da Universidade de Melbourne, se até o final do século o aquecimento global não for contido, essas enchentes podem se tornar até 80% mais prováveis. Ela cita que a atmosfera pode conter 7% mais vapor d’água para cada grau de aumento de temperatura. “A mudança climática está realmente afetando a quantidade de umidade que a atmosfera pode conter, e há muito mais incerteza em relação à configuração do sistema climático”, alertou Reid ao Xinhua News. [v]
Cidades no mundo todo ainda não se conscientizaram da sua íntima relação com os rios, mananciais, lagos e bacias – só se vê a água como uma fonte para explorar o turismo. Aqui mesmo em Porto Alegre, depois de 230 anos de desenvolvimento da cidade de costas para o Guaíba, um belíssimo projeto de orla foi implementado. São inúmeros os benefícios para a população e o turismo, com atividades ao ar livre em quadras esportivas, bares e restaurantes, espaços de eventos, marinas, etc. Mas faltou um estudo sério sobre manejo das águas. Agora está tudo alagado, enlameado, semidestruído.
“Nossa relação histórica com os rios foi a de negar sua existência, enfiar dentro de um tubo, de um canal, tampar e colocar um sistema viário em cima, ou do lado. Isso não está no passado. Isso continua acontecendo hoje. Esse é o modelo hegemônico atual. As políticas de drenagem e a relação com os rios urbanos são historicamente assim”, indicou Raquel Rolnik ao canal Meio e explicou que, ainda pior, para conter os efeitos disso, houve o acréscimo das bacias de retenção, os chamados piscinões, que acabaram reforçando ainda mais o tão nocivo processo de impermeabilização das cidades. “Os metros cúbicos de cimento para reter a água continuam reproduzindo o mesmo problema”, destacou a professora.
Portanto, não bastará reconstruir o que foi destruído, é preciso repensar todo um modelo de cidade, sua interação com os rios e lagos; seus acessos através de estradas e novas ferrovias*; mobilidade urbana, talvez com bondes novamente, com ganho até paisagístico; transporte de mercadorias; fornecimento de energia; sistema de coleta e distribuição de água – cisternas privadas, em todas as casas, além das tradicionais caixas d’água, e públicas, para recolher parte das águas torrenciais – e etc., etc. Buscar novas soluções significará ao mesmo tempo estar combatendo o aquecimento global, e todos ganham.
*Na próxima semana, vamos ver o projeto privado de trem Porto Alegre – Gramado, com capacidade de 240 lugares e estimativa de viagem de apenas uma hora num trajeto de 84 quilômetros. As empresas responsáveis – RG2E Engenharia Consultiva, STE Engenharia e BF Capital e SulTrens – detalharam a proposta, no último dia 11 de abril, na sede da Secretaria de Desenvolvimento Econômico, aqui na capital, para representantes das pastas de Logística e Transportes e do Meio Ambiente e Infraestrutura. Pode ser simbólico para o início de uma reconstrução do Estado em novos moldes.
[i] A arquiteta e urbanista Raquel Rolnik, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e relatora especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU para o Direito à Moradia Adequada, entre 2008 e 2014, acompanha de perto as transformações de São Paulo. “A gente sabe que 62% das emissões, pelo menos no caso de São Paulo, vêm da queima de combustível fóssil, gasolina, diesel, caminhão, ônibus, carro. Se continuar usando isso, não vai dar (para evitar tragédias)”, disse ao Meio. Leia na edição de sábado, 11.05, aqui.
[ii] Como Diretora de Redação da revista Distribuição, publicação mensal sob licença da Associação Brasileira de Atacadistas e Distribuidores, setor responsável pelo transporte de mercadorias da indústria ao pequeno e médio varejo.
[iii] Gazeta do Povo
[iv] Agência Brasil
[v] Xinhua News
*Vera Moreira foi repórter e editora no Diário do Sul e Zero Hora, em Porto Alegre, e Estadão, Jornal da Tarde e Dinheiro Vivo (Jornal GGN hoje), em São Paulo. Foi agente literária de Sergio Faraco, com quem organizou o livro Decálogo do perfeito contista. Autora de Mulheres, Cérebro, Coração.
Foto da Capa:
Leia mais Vera Moreira AQUI.