Tom Ripley é o mais famoso personagem criado pela escritora americana Patricia Highsmith. Aliás, pelo que se sabe de sua biografia e pelo que ela própria expressou algumas vezes em seus diários (que somam cerca de oito mil páginas), Ripley era visto por sua criadora como um alter ego, uma informação que se revela inquietante quando pensamos que Ripley é um assassino manipulador que vai gradativamente se conformando como um psicopata (embora esse seja um “diagnóstico” meio controverso e, no fim das contas, irrelevante).
Ripley é também uma figura que, por mais desconfortáveis que sejam suas ações, aparentemente tem seu lugar garantido na histórica da cultura de massa e está sempre pronto para ressurgir em grande estilo, como comprova a sua suntuosa nova encarnação em uma série recente da Netflix que traz o nome do protagonista, filmada em uma solene e muito, mas muito linda fotografia em preto e branco.
O personagem aparece pela primeira vez no romance O talentoso Ripley, de 1955. Nessa época, Highsmith já era uma autora com algum prestígio e um certo sucesso, uma vez que seu primeiro livro, Stranger in a train, de 1950, já havia sido adaptado para o cinema por Alfred Hitchcock em Pacto sinistro. Depois disso, Highsmith precisou lidar com o temor de que a publicação de seu segundo livro, The price of salt, lançado aqui no Brasil como Carol, fosse de algum modo prejudicar seu futuro profissional, dado que era o primeiro romance a apresentar um amor lésbico sem condenação moral ou final trágico moralizante, refletindo a própria sexualidade complexa de Highsmith e inspirado parcialmente em sua própria biografia (Highsmith havia recentemente rompido um noivado com o escritor Marc Brandel, que insistiu com ela para que fizesse sessões de terapia para “curar” suas “tendências homossexuais”. Para pagar pelas sessões, Highsmith havia arranjado um emprego de balconista na Bloomingdale, justamente a profissão na qual a jovem heroína de The price of salt começa a história).
O clima desconfortável que Highsmith parecia encontrar nos Estados Unidos a levou a temporadas cada vez mais extensas na Europa, onde ela havia descoberto um tipo de vida que almejava desde a juventude, e diversa da que conhecia em casa. Esse é um sentimento que Highsmith viria a reproduzir em O talentoso Ripley. Como conta Joan Schenkar na biografia The talented Miss Highsmith (2009):
“(Pat nunca foi “a mulher que era Ripley”, mas ela deu a Ripley muitas das características que gostaria de ter, bem como algumas de suas pequenas obsessões habituais. Assim como Pat, Ripley começava como um rejeitado em entrevistas de emprego e um fracassado sem respeito próprio. Tal como Pat, Ripley encontrava a sua “qualidade de vida” na Europa.”
O Personagem
Em O talentoso Ripley, Tom Ripley, um jovem de 25 anos, vive da mão para a boca em Nova York, tentando ganhar dinheiro com expedientes quase sempre malfadados, como pequenas fraudes de seguros, até ser procurado pelo industrial Herbert Greenleaf. O homem, desiludido e preocupado com o filho, Dick Greenleaf, faz um apelo a Ripley: ir à Itália, onde Dickie vive, e convencê-lo a voltar para casa. O velho acredita que as palavras de um amigo da mesma idade terão mais força nesse propósito do que as dele, mas há um equívoco de origem no projeto: Dickie e Tom não são amigos, apenas se conhecem vagamente (em parte devido à propensão de Dick de ensaiar passeios estimulantes a uma forma segura de submundo). Tom, entretanto, agarra a oportunidade de uma viagem paga à Europa. Chegando lá, abre o jogo com Dickie sobre o financiamento da viagem e ambos entram em um acordo de que Tom Ripley continue tirando dinheiro do Greenleaf pai enquanto aproveita a boa vida no Velho Mundo, algo que para Dickie não passa de uma charmosa transgressão.
A questão é que Ripley, após tomar contato com o mundo em que Dickie e outros como ele vivem e com tudo o que Dickie e outros como ele têm, não quer passar apenas uma temporada e voltar à sua vida de antes. Ele desenvolve uma fixação pelo jovem rico que é confusa em todos os aspectos. Em parte, atração sexual (Ripley se sente em constante perturbação pela presença de Margie Sherwood, jovem que pode ou não ser considerada “namorada” de Dickie). Em parte, o anseio de tomar o lugar de Dickie (entre os muitos “talentos” de Tom Ripley está o da mímica e da personificação. Com um pouco de treino, ele logo consegue reproduzir a voz e os trejeitos do amigo, que, além de ser da mesma idade, é da mesma altura). Em parte, a necessidade de um amigo para um personagem solitário desde sempre (necessidade equivocada, já que Dickie também o vê mais como uma curiosidade e logo se cansa de sua presença).
Não chega a ser um spoiler contar que, quando Dickie finalmente se cansa de Tom e decide se livrar dele, Ripley é quem age primeiro e, por impulso, se livra de Dickie, matando-o. Na sequência, para esconder seu crime, rouba a identidade do amigo e foge pela Itália deixando pistas falsas para não ser capturado nem implicado no homicídio se ele vier a ser descoberto, numa jornada em que cada movimento para esconder um crime parece levar a outro.
Empatia tortuosa
Um dos elementos que desde a origem fascinam em O talentoso senhor Ripley é a forma como Highsmith narra a história, sempre muito próxima ao ponto de vista do criminoso ele próprio. Sendo a história do livro a história de como Tom Ripley vê os acontecimentos, ela é narrada sem considerações morais. Ripley é um personagem completamente amoral e faz o que acha preciso para se livrar dos problemas provocados pelas ações anteriores. Mas, e talvez seja esse um dos elementos que garantam a sobrevivência especialmente do primeiro livro numa época em que histórias pelo ponto de vista de assassinos se tornaram quase o padrão: Ripley, em sua primeira aparição, embora seja claramente um homem amoral, não é um homem sem remorsos.
Talvez pela própria juventude do personagem neste ponto de sua narrativa, Ripley não é o psicopata infalível e sempre à frente das autoridades que o cinema e a TV contemporâneos adoram retratar. Ele age por impulso, ele comete erros, parte de seus esquemas não dão certo, e ele se sente o tempo todo acuado e muitas vezes assustado. Também carrega consigo não o arrependimento pelo que fez, mas pelos erros que cometeu e que podem vir a resultar em sua prisão. Reside nessa humanização do psicopata, se podemos falar assim, o encanto do romance, ao ponto de todo leitor do livro passar por um momento de clareza perplexa: a prosa de Highsmith e seu modo detalhista e minucioso de elencar as dúvidas e os medos de Tom Ripley leva o leitor de seus livros a, em algum momento, torcer para que o herói da história se salve, e é apenas em uma reflexão mais detalhada que você percebe que Tom não deveria escapar, tendo feito o que fez.
“Acho que eu vejo [em Ripley] um contraste interessante com a moralidade estereotipada, que é muitas vezes hipócrita e falsa. Também acho que zombar da moralidade da boca para fora e ter um personagem amoral, como Ripley, é divertido. Acho que as pessoas se divertem lendo essas histórias.”, disse Highsmith em uma entrevista de 1981 à publicação Armchair Detective.
Talvez a amoralidade exercida pelos psicopatas da ficção tenha um fascínio duradouro devido sobre o público, também devido ao fato de se permitir, no terreno livre da imaginação e no território seguro de uma peça de ficção, pensamentos e atos indizíveis ou que violem brutalmente as convenções morais. Claro, quando a coisa começa a virar realidade e esse passa a ser o padrão de ação de agentes políticos, por exemplo, como um certo ex-presidente e um bom número de seus grandes apoiadores, a coisa começa a ficar sinistra, mas estou divagando.
Há ainda um claro elemento de classe levantado no primeiro livro. Tom é claramente um jovem talentoso e com um potencial para grande sensibilidade. Premido pelas circunstâncias materiais desde o início, entretanto, ele não consegue deixar de sentir a injustiça que representa Dickie, o jovem charmoso e mimado desde o berço, desvalorizar muito do que teve de mão beijada.
Os retornos de Ripley
Ripley voltaria em outros quatro livros depois dessa estreia. Ripley subterrâneo (de 1970, que foi publicado também aqui no Brasil nos tempos da Brasiliense com o título de Um passo em falso), O jogo de Ripley (de 1974, que a Brasiliense na edição antiga nomeou O amigo americano, título da adaptação cinematográfica de Wim Wenders, que na prática misturava o segundo e o terceiro livro), O garoto que seguiu Ripley (1980) e Ripley debaixo d’água (1991).
Embora cada nova aparição seja uma felicidade para os fãs do trabalho da autora, a cada novo livro ficava claro que nem mesmo Patricia Highsmith conseguia repetir o que ela própria havia feito com o primeiro livro. A ambiguidade sexual do personagem, para começar, diminui consideravelmente. E a insegurança e o medo que haviam sido a tônica das ações de um então jovem e imaturo Ripley se tornam, à medida que o personagem vai envelhecendo, mais parecidas com o comportamento do psicopata padrão que estamos acostumados a ver em toda parte, o gênio intocável e inabalável que não corre, no fim das contas, perigo algum devido à sua inteligência superior.
Essa inviolabilidade de Ripley parece ser algo reconhecido pela própria autora a certo momento, já que no terceiro episódio da série O jogo de Ripley, Tom se torna praticamente coadjuvante de sua vítima, o moldurista francês Jonathan Trevanny, aliciado pelo assassino a se tornar ele próprio um criminoso. Um dos motivos, talvez o principal, para que Ripley teça uma teia de manipulações em redor do homem é o rancor, já que Ripley foi ferido em seu orgulho cosmopolita ao ouvir em um jantar Trevanny soltar um comentário maldoso sobre seus gostos e seu conhecimento estético, justamente aquilo que o personagem passou anos desenvolvendo com tanto labor. Com Trevanny como o novo “assassino em formação”, Highsmith pôde outra vez criar uma trama amoral mas sustentada no risco, uma vez que o amadorismo e a natureza pouco cruel de Treveanny prenunciam que ele talvez não venha a se sair nem próximo de tão bem quanto Ripley.
Embora a amoralidade de Tom Ripley seja um dos motivos de seu fascínio, provavelmente é a sua insegurança e a sua forma selvagem de escapar de encrencas com os mais atrapalhados improvisos e ao mesmo tempo criativos improvisos que parece sustentar as melhores histórias com o personagem. E talvez por isso esses dois livros em especial sejam os que geraram as adaptações mais ricas e efetivas.
Adaptações
A primeira delas, claro, O sol por testemunha, clássico de 1960 por René Clement com Alain Delon como Ripley. Não tive tempo de rever o filme, o que talvez eu devesse ter feito, mas pelo me lembro, a interpretação de Delon para o personagem era a de um Ripley mais distante, frio, estoico, o que talvez tenha potencializado o impacto de sua aparição em um cinema que na época fazia dos criminosos vilões histriônicos e dramáticos destinados a perecer de modo espetacular pelos seus pecados. Delon no papel tinha seu charme irrepetível, mas nos momentos em que a violência de Tom aflorava, o que sua atuação fazia emergir era uma crueldade séria e resoluta por trás de seus olhos azuis. Esta adaptação do primeiro livro da série, que eu me lembre, tem como ponto positivo o fato de que, sem algumas das restrições flagrantes do cinema americano do período, este filme francês tira partido da beleza de seu protagonista para deixar claro, ainda que de modo sutil, o subtexto erótico da obsessão de Ripley por Geenleaf
Depois, Wim Wenders faria de O jogo de Ripley seu O amigo americano, um neonoir com todas as tintas do período e Dennis Hopper no papel principal. É bem conhecido o fato de que esta talvez seja a adaptação mais odiada pela própria Patricia Highsmith, já que Hopper, com seu flagrante ar de perigo e seu ostensivo chapéu de caubói, contrasta com a sofisticação, a delicadeza e até a própria fragilidade aparente de Tom Ripley nos livros (e um dos motivos de sua duradoura impunidade). Highsmith escreveria a seu amigo Ronald Blythe que lamentava muito o que Wenders e Hopper “fizeram com meu Ripley”. Wenders mais tarde alegou que ela escreveu uma carta mudando de ideia após ver o filme uma segunda vez e que o parabenizou por captar a “essência” do personagem, mas não encontrei essa carta reproduzida em lugar algum, nem eu nem a biógrafa da autora, aliás, dado que ela menciona a alegação de Wenders no livro mas não há uma reprodução textual da tal carta.
Depois de O sol por testemunha, provavelmente a mais conhecida adaptação de Ripley para os cinemas seja o filme de Anthony Minghella com Matt Damon no papel. Adaptando o primeiro livro, esta produção tem em Matt Damon talvez a melhor encarnação do personagem, com sua performance cuidadosamente oscilando entre as várias facetas que o livro apresenta de Ripley: sua vulnerabilidade, seu desespero impetuoso, sua monstruosidade, a inteligência acuada que o faz improvisar ao acaso, com graus maiores ou menores de sucesso. É o melhor Ripley, mas nunca achei a melhor adaptação, devido às invenções que Minguella joga na história para, entre elas uma longa e convoluta manobra para explicar como o milionário pai de Greenleaf pede ajuda a Ripley (no livro, o homem simplesmente o procura) e a personagem vivida por Cate Blanchett, inexistente na obra original. Mas a exuberante fotografia e o ótimo elenco redimem o filme em retrospecto, acho. E o fato de que esta é a obra que melhor expressa a ambiguidade sexual do primeiro livro também merece aplausos. Mas acho que eu não gostei também do tanto de jazz que resolveram meter na história.
Há duas outras adaptações de menor sucesso, uma delas um filme hoje obscuro de Liliana Cavani, de 2002, que adapta o mesmo livro de O amigo americano, e com John Malkovitch no papel de um Ripley mais velho e mais seguro em suas maquinações. Gosto da interpretação de Malkovitch, e Cavani segue o original mais de perto do que Wenders, mas carece justamente daquilo que o filme do alemão tem de sobra: personalidade. Mas ainda assim, é um bom filme, o que ninguém parece ter dito de Ripley Under Ground, de 2005, com Barry Pepper no papel. Não vi esse filme, mas aparentemente ninguém viu, dado que ele hoje existe num limbo em que não se acha nem em torrent. Pelo que eu vi do trailer… talvez seja melhor, embora seja a única adaptação que não mira nem o primeiro livro nem o terceiro, e sim o segundo da série.
A nova série
E há agora a série da Netflix, com Andrew Scott dando vida ao personagem. Scott, conhecido por séries britânicas de prestígio crítico e popular, como Sherlock e Fleabag, é um grande ator. A série tem um visual glorioso, a trilha sonora não tem jazz (aleluia), mas ainda acho que temos aí o inverso d’O talentoso Ripley de Minghella. Lá, Matt Damon criou a encarnação perfeita do personagem, mas eu tenho até hoje reservas quanto ao filme. Aqui, a condução é magistral, mas o ator, por melhor que seja, parece às vezes deslocado.
Para começo de conversa, criar um Tom Ripley nesta história usando um ator de mais de 40 não é feito sem consequências. Uma delas, o fato de que a história precisa lidar com o fascínio passional e juvenil de Ripley pelo seu amigo rico e ao mesmo tempo baixar o volume das inseguranças gerais do personagem. Scott agora talvez seja o Ripley perfeito para os livros seguintes da série, se houver novas temporadas e outros dos romances forem adaptados. A ambiguidade sexual do personagem aqui também é diminuída, como se o novo Ripley não fosse um ser sexual de fato. Fico imaginando se não é isso também parte do espírito de um tempo para quem o sexo no entretenimento está por toda parte insinuado mas incomoda quando encenado (papo para outro momento)
Mas a fotografia da série é linda e a condução da narrativa está mais preocupada em fazer o espectador entender o que está acontecendo pelo visual em vez de soterrá-lo com diálogos. Logo, vale muito. E não desgosto de caracterização combina com a do Ripley mais maduro e perverso.
Mas sua primeira aparição é a da fase dos erros inconsequentes de juventude – que, pelo jeito, afetam até serial killers sem escrúpulos.
Foto da Capa: Divulgação
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