As novas tecnologias que envolvem exames detalhadíssimos, diagnósticos por imagens, dispositivos médicos, e inclusive procedimentos ou cirurgias por meio de equipamentos ou robôs controlados pelos médicos, possibilitam avaliar cada vez mais e com maior precisão o estado físico de cada ser humano, detectar doenças, as condições genéticas de cada paciente, a possibilidade de transmissão de tais problemas aos seus descendentes, e realizar o melhor tratamento para cada caso.
Problemas que poderiam ter consequências irreversíveis podem ser identificados e administrados tratamentos que em muitos casos solucionarão definitivamente qualquer doença ou problema físico.
No que concerne à reprodução humana, seja pelos meios naturais, ou por fertilização “in vitro”, inseminação artificial ou coito programado, o avanço científico e tecnológico é imenso e permite a avaliação médica sobre a situação e as possibilidades de cada paciente, até mesmo pelo exame de DNA ou pela visualização e coleta de dados do interior de seus corpos e dos seus embriões ou fetos, com grande precisão.
Outrossim, tratamentos, procedimentos e cirurgias podem ser realizados, dentro das barrigas das mães, para que os fetos se desenvolvam normalmente, problemas possam ser corrigidos, e os bebês nasçam com saúde, tenham uma vida normal ou com menores dificuldades do que teriam se não tivessem sido tratados e utilizados todos os avanços tecnológicos e recursos médicos disponíveis.
As pessoas beneficiando-se das novas tecnologias poderão escolher o melhor momento para terem seus filhos, o método de reprodução que irão adotar, avaliar com maior segurança os riscos e consequências de cada reprodução, e tratar com maior chance de êxito eventuais problemas que surjam durante a concepção, implantação de embriões e a gravidez.
Aconselhamento genético em caso de Reprodução Humana Assistida
Para que essas decisões possam ser tomadas em caso de Reprodução Humana Assistida (RHA) será decisivo um correto aconselhamento médico, melhor dizendo, um aconselhamento genético preventivo que levará em conta a existência de doenças ou problemas genéticos que possam afetar o embrião ou o feto, enfim, o ser humano que será gerado, e a possibilidade de evitar ou mitigar tais problemas.
O aconselhamento genético em caso de RHA é tão importante que sua necessidade é reconhecida pela ONU, e sua definição se encontra já no início da Declaração Internacional sobre Dados Genéticos, mais precisamente no artigo 2º, Inciso XIV, abaixo reproduzido em uma tradução livre.
“Aconselhamento genético: procedimento destinado a explicar as possíveis consequências dos resultados de um teste ou exame genético e suas vantagens e riscos e, se for o caso, para ajudar uma pessoa a assumir essas consequências em longo prazo. Tem lugar tanto antes como depois de um teste ou exame genéticos.”
O aconselhamento genético que ocorrer antes da concepção será denominado “pré-conceptivo”. Nessa fase será verificada a possibilidade de transmissão de enfermidades ou deficiências genéticas pelos óvulos e espermatozoides dos pais biológicos, o que é fundamental para que os pais ou mães decidam se querem seguir com “o projeto bebê”.
Isso é importantíssimo, pois poderá evitar um sofrimento imenso aos pais, que a gestante seja exposta a uma dor física e moral descomunal e tenha sua vida colocada em risco em caso de aborto natural por problemas do feto ou da necessidade uma interrupção terapêutica da gravidez, que se destaque é permitida pela legislação brasileira quando recomendada pela medicina.
Tendo havido a fertilização dos embriões in vitro passa-se para a fase do aconselhamento genético pré-implantatório para que sejam verificadas alterações cromossômicas ou genéticas nos embriões, e sejam escolhidos os embriões sadios para a implantação na mãe. Por envolver aspectos éticos, jurídicos e até religiosos, o aconselhamento pré-implantatório gera muita discussão, pois a segregação de um embrião em razão da sua genética caracteriza uma eugenia, que atrapalha até mesmo a evolução natural da espécie. Lembre-se que muitas pessoas nascidas com doenças ou problemas congênitos contribuíram muito mais para o desenvolvimento da humanidade do que pessoas que gozam de saúde perfeita que vieram de um embrião “considerado” perfeito. É muito complicado avaliar uma pessoa pelas suas características genéticas ou físicas, mas entendo também que os pais devem ser livres para decidirem sobre o tema.
E, finalmente após a implantação, começa a fase do aconselhamento genético pré-natal, que é aquele que acontece durante o desenvolvimento do embrião ou feto dentro da barriga da mãe, durante a gestação.
Wrongful conception/pregnancy action, wrongful birth action e wrongful life action
Nos Estados Unidos, na Inglaterra e em diversos outros países, encontram-se estes quatro tipos de ações de responsabilização civil por erros médicos:
- wrongful conception
- wrongful pregnancy
- wrongful birth
- wrongful life
Esses tipos de ações e os conceitos por elas trazidos também estão acontecendo no direito brasileiro, ainda que com outras denominações jurídicas. E a tendência é que quanto mais pessoas tiverem acesso às tecnologias médicas, maior será o número de incidentes e de processos indenizatórios.
Não encontrei na minha pesquisa sobre o assunto qual palavra a jurisprudência brasileira está utilizando para traduzir wrongful em específico. Saliento, no entanto, que a palavra wrongful no direito norte-americano tem o sentido de injusta, injustiça, ilegal, sendo que na língua portuguesa também é traduzida por “nociva”, palavra que também me parece adequada para traduzir o nome dessas ações.
Uma wrongful conception/pregnancy action é uma ação indenizatória decorrente do nascimento de um filho não planejado, em consequência de um aconselhamento genético falho ou de uma falha dos mecanismos que evitariam a concepção em decorrência de algum fato imputável a determinado profissional, como por exemplo, um procedimento de esterilização mal feito, a implantação de um embrião com deficiência ou doença. Essa ação também poderá ser ajuizada com fundamento na violação do direito ao livre planejamento familiar. O pedido dos autores buscará uma indenização a ser suportada pelo médico em razão de danos materiais e morais. O ajuizamento ocorre durante a gravidez.
Uma wrongful birth action é uma ação indenizatória proposta pelos pais quando uma criança nasce com uma doença, uma deficiência, uma necessidade de cuidados especiais e despesas, que obviamente acarretam danos materiais e morais.
Uma wrongful-life action é uma ação indenizatória ajuizada em nome da criança que nasceu com deficiências ou problemas. Nessa ação é alegado que, se não fosse em razão do aconselhamento médico negligente, os pais não teriam concebido a criança, ou, se tivessem, teriam abortado o feto para a evitar a dor e o sofrimento resultante dos defeitos congênitos. Boa parte das jurisdições rejeitam esse tipo de ação.
Considero que essa criança que nasceu com doenças ou limitações físicas, que muitas vezes lhe impedem inclusive de se comunicar, de se tornar independente até mesmo para se locomover, para fazer sua higiene pessoal, comer sozinha, trabalhar, e é obrigada a passar vida dependendo do gasto de quantias vultosas com médicos, remédios, fisioterapeutas, cuidadores, e afins, muito mais do que as demais pessoas do seu núcleo familiar, merece uma bela indenização pelos danos materiais e morais que sofrerá até o fim dos seus dias.
Entendo também que a legislação brasileira assegura a essa pessoa o direito a ser indenizada pelos danos materiais e morais que sofrerá continuamente enquanto viver, principalmente se for constatado que havia à disposição algum procedimento, cirurgia, ou tratamento a ser feito no embrião ou feto, e o médico nada fez para mitigar os problemas. Vale frisar, não há nenhum impedimento legal a esse dever de indenizar na legislação brasileira.
Como há ainda uma defasagem muito grande no Brasil da possibilidade de utilização em massa de tais tecnologias, que costumam ser muito caras, acessíveis apenas para uma pequena parcela da população brasileira, são poucas os julgados sobre tais matérias, que levam em consideração as terminologias usadas acima.
Todavia, na Apelação Cível nº 70075425744, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul já utilizou a terminologia wrongful conception, definida pelos egrégios julgadores com uma “figura do direito comparado que trata do dano ao planejamento familiar, decorrente do nascimento de um filho não planejado, apesar da correta adoção de mecanismos esses que teriam falhado por algum fato imputável a determinado profissional (inadequada colocação de DIU, ou vasectomia malfeita, por exemplo, ou a um fornecedor de produtos ou serviços (o caso das pílulas de farinha, por exemplo).”
Importante também salientar o recente julgamento realizado pela 1ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Santa Catarina, que decidiu que uma moradora do Oeste que estava na 28ª semana de gestação e perdeu o filho por erro médico, deverá ser indenizada pelo município e por um hospital. Segundo o relator da apelação “É seguro dizer que houve negligência médica pela não continuação do tratamento, com a repetição mensal do exame e verificação do estágio da doença durante a gestação, fato que incontestavelmente contribuiu para o trágico desfecho…”. A indenização foi fixada em R$ 100.000,00.
Vale salientar que no Recurso Especial nº 1.497.740-SP (2014/0099625), o Ministro Luis Felipe Salomão, do STJ, já reconheceu que um dano capaz de abalar o núcleo familiar, em razão direta de erro médico, deve ser considerado em relação a cada um dos seus membros, pois em razão da relação de afeto com a vítima todos sofrem individualmente pelo dano. Salientou, também que não há dúvida quanto à maior gravidade do dano à vítima direta dos erros médicos. Em relação à mãe, ao pai e ao irmão os danos experimentados são diferentes, portanto, os valore de suas indenizações também devem ser diferenciados.
Responsabilidade pelo erro médico
Nem sempre o erro médico é decorrente da conduta do médico. Não raramente este é um desdobramento de problemas do hospital, dos laboratórios onde são realizados os exames, das clínicas de diagnósticos, das equipes de paramédicos, de defeitos nos equipamentos, dispositivos médicos, dos robôs utilizados em cirurgias, por exemplo.
Desse modo, há de ser analisado caso a caso, com muito cuidado, para saber-se contra quem se irá buscar uma indenização, a reparação dos danos morais e materiais.
O médico responderá pelos danos nas hipóteses em que o erro tenha sido fruto da sua negligência, imprudência ou imperícia, de atos praticados do exercício da medicina exclusivamente. Mas, ainda assim, pode ser que o médico não seja a única pessoa contra quem se poderá requerer uma indenização, pois se ele for um preposto ou um profissional contratado pelo hospital, este último responderá solidariamente com o médico, em razão da sua responsabilidade objetiva, que é aquela responsabilidade baseada em culpa presumida, que independe da comprovação de culpa ou dolo do agente causador do dano.
Caso esse hospital pertença a um município, este poderá também vir a responder pelos danos causados pelo erro médico, também de forma objetiva. Entretanto, se o médico não tiver um vínculo com o hospital, apenas tiver alugado o espaço para realizar algum procedimento, o hospital, a princípio, não responderá solidariamente pela conduta culposa do médico.
Se o erro médico tiver sido causado por ações ou omissões dos paramédicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem e demais profissionais que trabalham no hospital, mas que não realizaram a correta esterilização dos equipamentos, dos dispositivos médicos, a devida higienização hospitalar, o responsável pela reparação de danos também será o hospital, e esse dever de indenizar também é consequência de uma responsabilidade objetiva.
Nas hipóteses em que o dano causado seja consequência do serviço extramédico, por exemplo, falta de treinamento e demais profissionais, defeitos das instalações do hospital, má conservação ou manutenção dos equipamentos, dispositivos, médicos ou robôs, nesse caso também será o hospital que deverá responder pelos danos, e de forma objetiva.
Já se o erro médico for consequência de defeitos dos dispositivos médicos, equipamentos ou robôs, o fabricante é que responderá pelos danos, também de forma objetiva, sem necessidade que se prove a sua culpa, que nesses casos é presumida, e o hospital responderá solidariamente pelos danos decorrentes dos referidos defeitos.
É sempre bom salientar que caberá aos advogados verificar caso a caso quem serão os responsáveis pelas indenizações causadas pelos erros médicos. Essas hipóteses foram apenas exemplificativas.