Hoje o texto não é escrito com a razão e sim com o mais profundo sentimento de gratidão e respeito. Escrevo com os olhos lacrimejando sobre algo tão perverso que está por vir. Voltamos aos primórdios, nos anos de 1940 até meados de 1950. Naquele tempo havia os compradores de ferro velho, com seus carrinhos e carroças. Ficavam com latas, ossos, vidros, papel, etc. Nada era jogado no lixo. Tudo era vendido a esses primeiros empreendedores ambientais em Porto Alegre (que na época não se apercebiam da importância de sua atividade para o meio ambiente).
Os anos passaram, a cidade cresceu e surgem os “lixões em Porto Alegre”. Um localizado na zona sul da cidade, em meio a uma região residencial. Outro na zona norte, numa região de banhado. Funcionaram até os anos 1990, quando os lixões foram extintos. O lixão da Zona Norte operou de 1985 a 1998, até o advento da Coleta Seletiva, um marco inovador na capital gaúcha, quando iniciou a separação mais adequada dos resíduos e um comprometimento de cuidado com o meio ambiente.
A construção de espaços com estruturas para o trabalho deu a esperança de uma melhor qualidade de vida e remuneração para esses trabalhadores. E isso de uma certa forma ocorreu. Porém, com o passar dos anos, o sucateamento das infraestruturas, o descaso com as questões ambientais, a falta de investimentos e ações de educação ambiental efetiva, o sucateamento do Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU), que vem ocorrendo por diversas gestões públicas, nos traz uma coleta seletiva ineficiente. A desigualdade social promovida pela economia atingiu esta camada da população que, além da invisibilidade social, ainda sofre com os valores baixíssimos dos materiais.
No antigo lixão da Zona Norte, foi criada a Unidade de Triagem Aterro Zona Norte, onde até hoje trabalham mulheres que eram oriundas daquele antigo lixão. Elas seguem tirando seu sustento dos resíduos. Criaram seus filhos e alguns permanecem ali trabalhando, sem condições apropriadas, com uma renda insuficiente, estrutura precária. Estão até hoje sem nenhum investimento em melhorias ao longo estes 34 anos de Coleta Seletiva de Porto Alegre. Neste cenário de descaso com os catadores, ainda temos os individuais que sofrem a perseguição. Constantemente tentam coibir suas atividades, além da exploração que muitos sofrem, como da locação do carrinho e obrigatoriedade de comercializar os resíduos por valores insignificantes.
O cenário da maioria das 17 Unidades de Triagem, onde estão estabelecidas as associações e as cooperativas de catadores, é de total sucateamento. Com o valor recebido pelo contrato com a Prefeitura, a maioria não consegue cobrir os gastos fixos da operação. Algumas optam por tirar da sua partilha (sua renda, que é baixa por conta dos valores dos materiais) para cobrir os custos. Outros, não conseguem, ficam meses sem conseguir prestar contas junto ao DMLU. Muitas vezes são rotulados de incompetentes, maus gestores. E muitos os taxam suas operações como uma “fragilidade e ineficiência” do serviço prestado. Para outros, o custo disso ao município é “muito caro e de teor assistencial”.
Talvez por esses preconceitos, algumas ações estão sendo tomadas, como a divulgada pela imprensa nos últimos dias. Os catadores ficaram sabendo pela imprensa sobre a entrega do recolhimento de vidros, através de chamamento público a empresa Vidrofix Comércio e Sucatas Ltda. A empresa atenderá inicialmente na Cidade Baixa, 4º Distrito, Rio Branco e Bom Fim, retirando, assim, uma fatia da renda dos catadores. O vidro sempre foi o material com maior impacto nas Unidades de Triagem: cerca de 20 a 35 toneladas/mês por grupo no valor de R$0,05 (cinco centavos o quilo). Além disso, era frequente a exposição a acidentes de trabalho.
Em vez de se valorizar esse material junto às associações e às cooperativas e investir numa separação mais adequada e segura, opta-se por entregar a uma empresa privada. Da mesma forma, a retirada de fios soltos e inativos dos postes foram destinados para uma Startup contratada ao município de Cachoeirinha. Mais uma vez, se deixou de aumentar a renda dos catadores formalizados contratados pela Prefeitura de Porto Alegre. Este material “vale ouro”, o valor gerando entre R$19,00 e R$39,00 o quilo.
Diante deste cenário estamos avançando para um processo de privatização dos serviços básicos da cidade. A ideia é entregar o gerenciamento dos resíduos de Porto Alegre para a iniciativa privada por 35 longos anos. O objetivo é, de vez, trazer a mecanização para dentro destes espaços, tirando campo de trabalho de centenas de pessoas e suas famílias. A desculpa é de que “não são capazes”. Com sua autonomia de gestão, precisam de suporte técnico (neste caso já no pacote com intuito de se fazer auditorias). “Vão ter tecnologia de ponta”, dizem. Afirmam que terá “investimento pesado em infraestrutura, tudo o que a Prefeitura não pode oferecer”.
“Ah não é assim. Estamos prontos para receber os contrapontos, não vamos acolher tudo, mas alguma coisa podemos considerar”, são algumas das justificativas de pessoas que formataram a privatização De empreendedores a funcionários! Resumidamente é isso, com metas a bater para maior aproveitamento dos resíduos e diminuição de rejeito baseados em dados que não são extraídos com quem está na ponta.
Cada liderança tem sua história vinculada à catação e à triagem de resíduos, por vezes vivências e experiências ligadas à violência doméstica, uma vida sofrida. Cada um dos trabalhadores destes espaços tem rosto, nome, experiências e um conhecimento sobre resíduos e sua logística que coloca os “doutores”, por vezes, em situação de aprendizado de algo que a academia não lhes oferece. Não é assim que as coisas deveriam ser feitas, mas sim com diálogo com a categoria e seus representantes. Os catadores e as catadores têm voz e conhecimento!
Estamos num ano eleitoral, e, por vezes, a maioria da população desconhece a cadeia toda que envolve os resíduos. Compra a ideia da privatização como solução. É preciso reformular a parceria público-privada proposta, destinando ao parceiro privado investimento em infraestrutura e maquinários dialogando com as associações/cooperativas e condicionando as suas necessidades. O Poder Público deveria remunerar o trabalho e o serviço prestado por estes profissionais através de um contrato digno, que o resultado ocorrerá. Deem autonomia na contratação de técnicos nas áreas onde julguem necessário, na busca de parceiros realmente responsáveis e comprometidos através da logística reversa.
Por que não tirar do papel a proposta encaminhada pelo Fórum de Catadores das Unidades de Triagem para implementação da Coleta Seletiva Solidária, feita pelos catadores, e investimentos em Educação Ambiental? Eles estão prestes a serem engolidos pelos novos tempos! Precisava eu fazer esta narrativa muito além dos spins de Resíduos e Sustentabilidade que faço parte no POA Inquieta.
Já fazem nove longos anos que trabalho com Associações e Cooperativas de Catadores em Porto Alegre. Por isso apelo aos “Senhores e Senhoras”, que articularam tudo isso, respeitem a história da reciclagem em Porto Alegre. Respeitem a memória de Marli Medeiros, do Irmão Cechin, que foram destaques na luta pelos direitos desta categoria. Aos Antônios, Paulas, Alex, Sonias, Marinas, Marines, Danieles, Nubias, Eloas, Julianos, Aureas, Josués, Solanges, Eduardas, Grazis, Pamelas, Debóras, Elaines, Eduardas, Roses, Sirleis, Lidianes, Kerolins, Lirias, Gernos e tantos outros que lutam dia a dia pela sua dignidade e prestam um serviço de preservação ambiental de excelência sem reconhecimento, visibilidade ou remuneração decente!
*Simone Pinheiro é assistente social, assessora técnica, mestre Ciências Sociais e articuladora POA Inquieta
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Foto da Capa: Divulgação