Estou nesse espaço de reflexão, mais uma vez, para contar um pouco da minha história enquanto mulher negra, enfermeira e cientista social que escolheu trabalhar no Sistema Único de Saúde e colaborar para a promoção da saúde dos indivíduos.
Quem cuida de gente e quer cuidar bem dessas pessoas, produzindo conhecimento para melhorar a vida dos indivíduos, precisa gostar de diversidade humana e de ouvir histórias. No Sistema Único de Saúde, chamamos isso de humanização- escuta qualificada.
Ouvir mais do que falar, perceber através na manifestação corporal o que a boca ainda não verbalizou. Nesses vários anos, ouvi muitas histórias. Com essas mulheres sorri, gargalhei, chorei e orei em momentos de tristeza e dor.
Foi nesse lugar que compreendi que a saúde depende de muitos fatores: acesso aos serviços, direitos socais, apoio social. Certamente foi por isso que depois de treze anos me tornei cientista social da saúde e percorro todos os dias o caminho desafiador do cuidar do outro na sua pluralidade.
Uma das coisas que aprendi, foi perceber os comportamentos humanos e a organização dessas mulheres para estarem no serviço de saúde. Primeiro para cuidarem de si, mas principalmente para estarem saudáveis para cuidarem de seus filhos. Sempre tive uma atenção especial para as famílias constituídas por mulheres, preocupadas em garantir a subsistência de seus filhos e netos.
Muitas mulheres enfrentam adversidades: violências, desemprego, subemprego, racismo sexismo, machismo. Quando chegam ao serviço de saúde, as suas individualidades precisam ser respeitadas e consideradas.
Mulheres negras, mulheres com deficiências, mulheres trans, mães solos, mulheres lésbicas, mulheres imigrantes e refugiadas… são todas elas que vivem na margem da sociedade lutando por igualdade e oportunidades.
Tentativas de silenciamento e invisibilização, sufocam as nossas existências todos os dias, mas resistimos diariamente para ocupar espaços que insistem em dizer que não nos pertencem.
Ações orquestradas no controle dos nossos corpos, mentes e opiniões. Crianças e mulheres violentadas, jovens trans impedidas de usarem o banheiro da escola, jovens cotistas vítimas de racismo, mulheres independentes que confrontam o machismo nas suas relações afetivas, mães solos que não conseguem apoio e oportunidades.
Somos mulheres múltiplas, potentes e lutamos por liberdade de viver integralmente as nossas existências. Somos merecedoras de afeto, liberdade, justiça social e amor.
Na condição de mulher negra, desejo falar da opressão que dissemina a ideia de que as mulheres negras são naturalmente fortes, e o que desencadeia ausência de afeto e cuidado a essas mulheres? Assim perpetua-se a violência obstétrica, a morte materna, a exploração no trabalho, o subemprego e a ideia de que sempre estamos a serviço de alguém ou a alguma coisa.
Quando falamos: respeitem a nossa Humanidade, estamos dizendo NÃO para as violências e opressões. Alcançar a plenitude da nossa subjetividade, reconhecer as nossas experiências de feminilidade negra e não permitir que o racismo silencie as nossas dores e emoções.
Como diria Sueli Carneiro: “Quando falamos do mito da fragilidade feminina, que justificou historicamente a proteção paternalista dos homens sobre as mulheres, de que mulheres estamos falando? Nós, mulheres negras, fazemos parte de um contingente de mulheres, provavelmente majoritário, que nunca reconheceram em si mesmas esse mito, porque nunca fomos tratadas como frágeis”.
Não precisamos sofrer em silêncio, somos humanas, e principalmente estamos aprendendo a dizer NÃO, e essa narrativa é um ato político, porque temos direito a uma vida plena: sem exploração, violência.
Será que as mulheres negras querem o estereótipo de mulher frágil que o patriarcado criou?
Não queremos nenhum estereótipo, lutamos pela nossa condição de humanidade. Não somos fortes em todas as situações, e há momentos de fragilidade também. Queremos o direito de ter sensibilidade, de chorar, de pedir ajuda.
Mulheres afro-americanas estão na luta por igualdade de direitos, creches em tempo integral para seus filhos, escola acolhedora para a mãe adolescente e seu bebê, relações afetivas saudáveis, formação profissionalizante gratuita, transporte público de qualidade e seguro, saneamento básico, educação promotora de autonomia, políticas públicas saudáveis de forma equânime, garantia de direitos para que as mães não chorem a morte de seus filhos.
Nós, mulheres, queremos construir o nosso espaço na sociedade de forma afetuosa. Reflito sempre o meu papel nesse lugar, em descontruir na gestão dos serviços de saúde e na formação profissional; essas práticas que negligenciam, invisibilizam e violam direitos.
Volto a dizer: a categoria mulher é uma variável histórica e que possamos unir nossos esforços para garantirmos uma vida com dignidade para as mulheres de todas as nuances.
*Gisele Cristina Tertuliano é Enfermeira, Cientista Social, Doutora em Saúde Coletiva