Invejo os seres humanos que desenvolveram um desapego ao vencimento de títulos com códigos de barra, que não têm qualquer siricutico por conta de datas entre barras diagonais, que superam o fato de que o tempo é marcador de juros e de multa, percentuais que são descaradamente não reconhecidos.
É fato, é dado e estão em estatísticas. A gestão financeira dos lares brasileiros, da casinha de sapê entre rios no interior de Rio Branco à mansão na rua Deputado Laércio Corte, no bairro Morumbi, ou seja, quem tem consciência quantitativa e monetária sobre o orçamento dos bens materiais é … adivinha?
Achei fofinho que o Chat GPT, ao meu questionamento sobre responsabilidade de boletos, traz a afirmação: “Não é correto afirmar que as mulheres têm a maior responsabilidade sobre pagar boletos. A responsabilidade pelo pagamento de boletos não está ligada ao gênero”.
Será?
A frase seguinte às duas supracitadas, após a vírgula, é a seguinte: “mas sim às obrigações financeiras assumidas individualmente ou compartilhadas em um relacionamento ou família.”
Ora, se não, vejamos que, no fim das contas, a realidade da resposta de quem sabe da falta do rolo de papel higiênico ou do preço do quilo de feijão não impera nos portadores de cromossomo Y.
Ao assumir a gestão do dinheiro pequeno (já estava na hora de trazer as mulheres para esta ciranda), Clara Coria, em Sexo Oculto do Dinheiro[1], nos abraça e nos sacode quando apresenta o orçamento doméstico como cerca e crítica a maldição das denominações rainha do lar, porque, desse espaço de reinado, nossos súditos estariam atrelados aos panos de copa e as louças da casa.
Essa responsabilidade de boleto afasta as mulheres dos dias e anos sabáticos. Quem tem boleto para pagar não tem tempo para ficar dois meses caminhando entre Pamplona e Burgos ou pensando para que lado vai destinar sua carreira, para que vaga vai se aplicar, para ficar três meses bebendo água de coco em algum litoral deste país.
Mas por quê?
Por que dentro da lista de afazeres diários, mensais, das metas, das listas, dos planos, usufruir espaços de tempo sem nada a ser feito, ou seja, descanso, são apenas segundos dentro de trezentos e sessenta e cinco dias?
O ócio.
Etimologicamente falando, o ócio é masculino, do latim “otium”, descanso, retiro, inatividade, tempo livre. Filosoficamente falando seria o apreciar a vida em contemplação.
Pesquisas mostram que as mulheres costumam ter uma maior preocupação com a segurança financeira do lar e da família. Pesquisas mostram que em qualquer mudança no mercado de trabalho as mulheres são as mais impactadas, de forma negativa, ou seja, ainda são a maioria das demissões em massa. Pesquisas mostram que as mães solo são em sua maciça maioria mães pretas. E mãe solo é ser tudo, todos e um tanto para uma ou mais vidas.
E de que jeito a gente ajusta isso? Vou te contar sobre a renda mínima básica, pelas palavras e pelas ideias de Andaiye[2], cuja frase estou quase rabiscando em tinta e pele: “O importante é transformar o mundo”, título da coletânea de livros que trata da sua vida e das suas obras. “Em todos os grupos raciais/étnicos, um dia típico de trabalho para a maioria das mulheres variou de 14 a 18 horas, com pouca ajuda de alguém, frequentemente com tecnologia mínima ou pouco confiável, acesso limitado a comodidades e com muito pouco lazer ou tempo livre para elas”[3].
Na sua luta, a resposta para as pesquisas acima e para a nossa pergunta quanto a ausência de contemplação da vida das mulheres, mas principalmente das mulheres pretas, que apesar de todas as (re)evoluções permanecem em maioria sendo a base. Por meio de uma campanha internacional sobre a percepção óbvia do custo da não remuneração pelo trabalho do cuidado, pleiteava-se paridade de pagamento, por meio de um salário-mínimo para mães, mães solos e outras cuidadoras.
E você que achou que a paridade de pagamento entre gêneros era novidade em 2023? Nadica. Se eu te contar que a nossa Constituição Federal, com seus artigos e incisos, já deixa bem certinho essa régua da remuneração, não vai ser novidade pra você, afinal, adivinhar se o nosso maravilhoso poder legislativo[4] não adora construir uma nova lei ao invés de usar o que já temos.
Pois bem, voltamos pras cansadas.
Com a bandeira “investir em cuidar, não em matar”, Andaiyde se concentrava em ““building gender equity”, em 1980. Silvia Federici[5], cinco anos antes, em seu texto “salários contra o trabalho doméstico”, aponta o dedo exatamente para o bolso: “ter um salário significa fazer parte de um contrato social” e “exigir salários para o trabalho doméstico é recusar-se a aceitar o nosso trabalho como destino biológico”.
E, sim, a solução é renda, claro que é. Para que mulheres possam perceber seu respirar, possam ter tempo de ler o que escrevem e até mesmo ouvir o que falam, ou seja, contemplar-se em existência, o bolso precisa estar minimamente garantido e, para isso, te trago outra lei. O projeto de lei nº 2099/2020, que estacionou na fase da Comissão de Seguridade Social e Família, ou seja, ainda temos muitas fases, diz o que é renda mínima: “auxílio permanente à mulher provedora de família monoparental, no valor de R$ 1.200,00 (mil e duzentos reais) mensais”.
Leis são instrumentos, ferramentas, a palavra deriva dos verbos latinos legere, que significa ler, e ligare, em português, ligar, porque normas escritas vinculam, obrigam, criam direitos e deveres, responsabilidades.
Por uma paridade de seres humanos com a possibilidade de exercer o ócio, com boletos minimamente pagos, pelo descanso e pelo bem viver das mulheres, que seja lei.
Notas
1. O Sexo Oculto do Dinheiro – Clara Coria Editora Rosa dos Tempos, 1996, 187
2. Andaiye
3. “Mulheres da base aprendendo a contabilizar seu trabalho não remunerado: relatório sobre um ensaio de 2001-2002”
5. Federici, Silvia. O ponto zero. Editora Elefante. p. 81
*Chris Baladão, bicho raro, formada e por coração advogada, na época em que o curso levava sociais em seu nome, escritora por necessidade de expor a palavra, bailarina porque o corpo exige, professora porque a experiência da vida precisa ser compartilhada.
Foto da Capa: Yan Krukau / Pexels
*Texto originalmente publicado aqui em 21 de julho de 2023.