O desenvolvimento de novas tecnologias permitiram grandes avanços médicos pela possibilidade de que, antes mesmo da concepção, os corpos da mãe e do pai sejam examinados, assim como suas condições físicas e genéticas, para que o embrião possa ser concebido de forma segura, permitindo que a fertilização e a gravidez sejam mais saudáveis e com menos riscos para a mãe e o bebê. Deste modo, aumentam as chances de que ele nasça com saúde e possa levar uma vida normal, sem dificuldades físicas que venham lhe causar sérios problemas, dores, limitações, impossibilidade de estudar, de trabalhar, de ter uma vida plena.
A este passo vale explicar que a responsabilidade médica, dependendo de cada caso, incluindo médicos, laboratórios, hospitais, robôs, começa desde o exame pré-concepcional, também chamado pré-gestacional.
O acompanhamento pré-concepcional, normalmente realizado cerca de três meses antes da mulher iniciar com a tentativa de engravidar, permite que exames, uma detalhada avaliação clínica, e até tratamentos sejam realizados na gestante, para que tudo posso ocorrer da forma mais correta possível. Busca-se, assim, saber se a mulher tem condições de produzir um óvulo saudável, se ela pode engravidar e gerar sem maiores complicações. Naturalmente, ao realizar esse acompanhamento o ginecologista obstetra deve avaliar os possíveis riscos, as possíveis patologias, riscos de abortamento, tudo que possa interferir no desenvolvimento do feto, na gestação no parto e na saúde da mãe. Para tanto, utilizar a melhor tecnologia disponível para a realização dos exames e conhecer o histórico pessoal e familiar da gestante são fatores muito importantes.
Superada essa fase, em casos de fertilização in vitro (FIV) procede-se com o diagnóstico pré-implantacional que é a realização de exames do DNA do embrião resultante da FIV. Com base nesses exames poderão ser constatadas alterações genéticas antes da FIV, o que permitirá que este embrião seja inutilizado e que a mãe possa obter um outro embrião apto a FIV.
E finalmente, antes do parto, temos o acompanhamento pré-natal. Conforme publicado no site do Ministério da Saúde, “o objetivo deste acompanhamento de pré-natal é assegurar o desenvolvimento saudável da gestação, permitindo um parto com menores riscos para a mãe e para o bebê. Aspectos psicossociais são também avaliados e as atividades educativas e preventivas devem ser realizadas pelos profissionais do serviço”.
Agora imagine se em qualquer uma dessas fases houver um erro médico, ou até mesmo um erro nos exames que tenha induzido o médico a outro erro, ou um defeito em algum equipamento ou robô que traga consequências danosas para mulher, para o feto ou para o bebê, em alguns casos com repercussão negativa na própria qualidade de vida do ser humano que tiver nascido. Isto sem falar que há o dever médico de informar aos pacientes os riscos que ele irão correr, para que eles possam decidir a respeito, se, por exemplo, continuarão ou não com o projeto de ter um bebê que poderá ter problemas bem complicados durante sua vida inteira, ou que cuja gravidez possa colocar até mesmo mãe em perigo.
No direito da common law, utilizado em países mais desenvolvidos como, por exemplo, a Inglaterra, os Estados Unidos e o Canadá, e em outros países da Europa, em que as pessoas que têm maior acesso a tecnologias e a exames que podem ser utilizados e analisados pela área médica, já há algum tempo é possível verificar a existência de conceitos jurídicos criados em decorrência de julgamentos de ações indenizatórias causadas por erros que ocorram em quaisquer uma destas fases, e que causem danos materiais e morais à mãe, ao feto, ao bebê e até ao pai. E a resposta do mundo do direito para este tipo de situação, também já vem ocorrendo no Brasil, com a incorporação pelo nosso judiciário inclusive da terminologia jurídica utilizada por esses países.
Antes de mencionarmos tais conceitos, vale a pena fazer algumas suposições para entender como podem ser variados os problemas e os danos causados por erros em quaisquer uma dessas fases.
Imagine que um médico, após fazer um exame clínico e analisar os exames médicos, concluir que a mulher não tem a menor chance de ter um filho e a liberar para ter relações sem qualquer meio anticoncepcional, e ela acabar engravidando de alguém que ela jamais imaginou ter um filho, ou em um momento em que para ela e até para o seu marido seja péssimo. Por exemplo, eles estão se separando ou acabaram de ganhar uma bolsa de estudos fora do país, ou assumiram uma função que ela não poderá exercer em razão de uma gravidez não planejada ou até mesmo do alto risco que isso implicaria para a sua saúde. Nestas situações, obviamente, houve culpa, um erro ou vários erros, de uma ou mais áreas médicas que, dependendo do caso, ensejam indenização por danos materiais e morais.
Também podemos imaginar, por exemplo, que apesar de ter sido possível verificar que o embrião não estava em condições de ser implantado, a área médica por negligência não se deu conta, e na realidade o embrião estava com vários problemas genéticos, que causaram o abortamento de um ser incompatível com a vida, ou que em razão destes problemas, alguém nasça com imensa dificuldade para ter uma vida digna, que acabe dependendo eternamente do acompanhamento e do cuidado de terceiros, de tratamentos caros e invasivos, com enorme sofrimento físico e moral, e com prejuízos econômicos consideráveis. E como ficaria a responsabilidade médica em casos que ela poderia ter agido a tempo de remediar qualquer problema físico do feto por meio de tratamentos ou cirurgias realizadas durante a própria gestação?
Evidentemente, as consequências jurídicas e as ações jurídicas indenizatórias, dependerão de cada caso concreto. Atualmente baseadas nas terminologias importadas de outros países vêm se utilização os seguintes nomes para tais ações: wrongful conception/pregnancy, wrongful birth e wrongful life.
A ação de wrongful conception/pregnancy, que pode ser traduzida para concepção indesejada, pode ser utilizada quando a gravidez for consequência de um aconselhamento genético falho ou errado. Dependo da situação, a causa desta ação pode ser a implantação de um embrião com problemas, ou até mesmo lastreado na violação ao direito ao livre planejamento familiar. Deste modo, por meio desta ação podem ser pleiteadas a condenação dos réus ao pagamento de uma indenização pelos danos materiais e morais que tiverem causado. A legitimidade para ajuizar tais ações obviamente serão dos pais.
A ação wrongful birth, que pode ser traduzida para nascimento errado, pode ser utilizada quando uma criança nascer deficiente ou com uma doença em razão de um aconselhamento genético errado. Nesta situação, como os pais poderiam ter interrompido a gravidez caso tivessem sido alertados dos problemas, a legitimidade para ajuizar tais ações, postulando danos materiais e morais é dos pais.
A ação wrongful life, que pode ser traduzida para vida indevida ou vida errada, pode ser utilizada quando houver o nascimento de uma criança com graves doenças ou deficiências que poderiam ter sido detectadas ou tratadas durante a gravidez, em razão de uma omissão ou erro médico ocorrido durante a sua gestação. Desta forma a legitimidade para ajuizar esta ação será da criança ainda que representada por seus pais, e ela poderá postular indenizações pelos danos materiais e morais incorridos.
Conforme mencionado nas páginas 39 e 40, do livro Responsabilidade Civil e Novas Tecnologias, coordenação de Guilherme Magalhães Martins e Nelson Rosenvald, edição de 2020, no Brasil já existem demandas por wrongul conception decorrentes de esterilizações falhas, e a expressão wrongful conception foi encontrada pela primeira vez em um julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), na Apelação Cível nº 70075425744. Essa decisão do TJRS foi repetida no Agravo Regimental do Recurso Especial nº 660577 do Superior Tribunal de Justiça.
Vale lembrar um julgamento bastante famoso, ocorrido na Inglaterra, em 2021, em que a Suprema Corte de Londres condenou o médico responsável pela concepção de Evie Toombes a lhe indenizar em milhões. Esta ação foi fundamentada em wrong conception, e a autora alegou que o médico falhou ao não indicar para sua mãe, antes mesmo de ficar grávida, que ela tomasse suplementos vitais, no caso ácido fólico, o que minimizaria o risco de que ela tivesse espinha bífida, que é uma malformação do tubo neural que geralmente afeta a coluna vertebral e o sistema nervoso central, podendo trazer sérios problemas para a vida da pessoa que irá nascer. Na alegação de wrong conception, a autora da ação também sustentou que se sua mãe tivesse sido corretamente informada, ela não teria seguido com a concepção, e ela não teria nascido com lipomielocele, um defeito na espinha que torna sua mobilidade muito limitada e a faz depender cada vez mais de uma cadeira de rodas, à medida que ele fica mais velha, além de lhe causar outros problemas físicos. Na época em que foi publicado o artigo do The Sun, os advogados confirmaram que o valor da indenização seria “grande”, pois deveria cobrir os custos das extensas necessidades de cuidados que ela necessitará pelo resto da vida
Voltando ao direito brasileiro, considero que a utilização de tais conceitos uma coisa muito boa e necessária, pois obviamente o nível de sofrimento e de dificuldades que alguém que nasce com um problema de saúde ou com alguma deficiência tem de superar pode ser imenso, e também impactar seus familiares que sofrerão pelo filho, pelo neto, pelo irmão, por eles mesmos, e ainda terão de arcar com o suporte emocional, material, e com os elevados custos necessários aos tratamentos e ao bem-estar desta pessoa que nasceu com um problema grave, que se não fosse a falha médica, poderia ter sido evitado.
Foto da Capa: Freepik / Gerada por IA
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