Revés. Palavra que, às vezes, parece um falso cognato entre o português brasileiro e o espanhol argentino. Direi dessa maneira, porque muitos mal-entendidos se diluem além-mar, sem relação com a babel latinoamefricana. Afinal, a Europa talvez seja, para nós, uma sorte de Reino del revés, como a canção de 1963, de María Elena Walsh.
Participar da criação de uma criança argentina me fez ter contato e curiosidade sobre essa escritora. Infelizmente, nosso Brasil tantas vezes é como uma grande ilha rodeada pelo Atlântico e pelo oceano hispano hablante. Se bem que nossa cultura tem um enorme caldo cultural africano – produto da longa escravização, mas também da nossa resistência ao branqueamento – é verdade que certos intercâmbios poderiam ser bem mais incrementados. Certa vez, escutei a cantora mexicana Julieta Venegas dizer em um show que o portuñol é a língua do futuro. Oxalá! Enquanto a sorte dessa conexão não vem, contaremos com as traduções possíveis de Venegas e de Walsh.
Esta última promoveu um lindo trânsito entre poesia e infância. Multiartista, Walsh era também atriz e cantautora e, a seu modo, uma ativista. É nessa mescla que nos conta sobre um misterioso reino onde a lógica é subvertida ao ponto de ensejar uma ética distorcida. Crítica social, por vezes, associada ao fato de a Argentina dos anos 60 já ter naquela altura padecido alguns golpes de estado.
Me dijeron que en el Reino del Revés
[Me disseram que no Reino ao Contrário]
Nadie baila con los pies
[Ninguém dança com os pés]
Que un ladrón es vigilante y otro es juez
[Que um ladrão é vigia e o outro é juiz]
y que dos y dos son tres
[E que dois e dois são três]
Vamos a ver como es
[Vamos ver como é]
El reino del Revés
[O Reino ao contrário]
Mundo afora, hoje muitos reinos del revés estão ganhando força. Esses espelhos invertidos ecoam nossas repetições mais tristes e sinistras. É o passado fazendo rimas sem graça.
É de conhecimento comum que a psicanálise lida com as formações e deformações do inconsciente. Entretanto, outro grande estudo incontornável para qualquer analista é a repetição. Uma simples palavra que enseja um pedido de retorno, reprise, retomada. Nos piores casos, por obstinação e, nos melhores, como ânsia de uma novidade. Às vezes, Freud chamava isto de elaboração. O problema é que essa nem sempre vem. Aí, já sabemos, é um revés.
Por fim, trago outra imagem que indica um pouco mais a nossa morbidez e gosto pelo mais do mesmo. Lembram do boomerang? Aquele instrumento de caça conhecido de muitos povos originários, cuja característica mais chamativa é o retorno. Pois bem, na origem, o retorno do instrumento só acontecia quando o objetivo não era atingido, quer dizer, quando não se atingia o alvo. Na sobrevivência lúdica do objeto, ainda hoje, é como se o deslumbramento estivesse mais nesta volta do que na transposição de um limite, no acerto. No retorno do boomerang, o revés. Seria tempo de perder alguns boomerangs.
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Foto da Capa: María Elena Walsh / Arte de Celina Abud