Emoção é a marca deste texto. Escrevi no impulso logo depois de ver a entrevista do jornalista Bob Fernandes, no seu Canal no Youtube, com os psicanalistas Maíra Brum Rieck, Paulo Endo e Edson Luiz André de Souza sobre o projeto que vai registrar a memória da pandemia no Brasil.
1.257 relatos sobre pesadelos e sonhos de um tempo de muita fragilidade
O Coletivo Inventário dos Sonhos, criado por vários psicanalistas, coletou desde 2020, através de um formulário eletrônico que as pessoas respondiam de forma espontânea, um material instigante sobre o período da pandemia no Brasil – 1.257 relatos sobre sonhos e pesadelos vividos em um momento de abandono e solidão concedidos ao Museu da Pessoa e ao Museu das Memórias Impossíveis para catalogação. É o maior acervo sobre a memória da pandemia de que se tem notícia. E no futuro teremos uma exposição. O acervo nasceu de uma escuta singular, secreta. Convertê-lo em coletivo contribui como testemunho de um tempo em que vivemos sem nenhum gesto, nenhuma atitude de apoio e força de quem governava o país na época. Pelo contrário. O presidente ria da dor e das perdas da população. Transformava-as em piadas e deboche ao imitar pessoas com falta de ar, fazer declarações do tipo “não sou coveiro” e promover “motociatas” agressivas que estimulavam as aglomerações.
É fundamental a criação de um arquivo que testemunhe cada atitude para que esta memória não se perca e não se repita.
A naturalização de 700 mil mortes, a negação do sofrimento de famílias devastadas pela doença, pela falta de vacinas, pelo abandono e pela impossibilidade do luto necessário para elaborar as perdas não pode ficar impune. Solidão, traumas e dores agudas ainda não elaboradas. Vivemos hoje uma tentativa de volta à normalidade, mas com sequelas. É preciso falar sobre o que aconteceu. Entender o redemoinho que nos tirou o sossego e acelerou a polarização. Não há volta possível sem esta passagem. Um novo tempo só virá com este movimento. Na medida em que damos voz aos nossos sentimentos através da escrita, da fala e da escuta, entendemos a dimensão da tragédia que vivemos e elaboramos a dor. Tragédia que passou também pela exaustão provocada pelas imagens de hospitais abarrotados, profissionais da saúde exaustos física e emocionalmente, covas coletivas que ainda estão em nossas retinas. É fundamental tocar nos pontos sensíveis que tornaram os sonhos impossíveis para voltar a sonhar.
Essa história não pode ficar escondida no fundo dos nossos baús como tantas ficaram e voltaram a sangrar. Se o sangue é rapidamente apagado, a memória não. E é a memória que vai nos ajudar a elaborar o sofrimento e resistir para contar as histórias de vidas dilaceradas, interrompidas e perdidas pelo avanço da pandemia de covid-19, que ainda pulsam na sociedade brasileira e doem. Só assim, juntos e conscientes, vamos construir um novo tempo.
Foto da Capa: Precisamos ver, por Tamar Matsafi