Succession é uma série da HBO (ou HBO Max, ou Max, seja lá como aquela joça se chama hoje em) na qual o espectador acompanha ao longo de quatro temporadas o drama de uma… sucessão, como muito honestamente declara o programa já no título. Logan Roy, um magnata das comunicações vivido pelo ator britânico Brian Cox em uma interpretação feroz, está em seus anos de declínio, mas se recusa a abdicar do comando do império financeiro que construiu (e que inclui veículos de mídia, serviços de cruzeiro e parques temáticos de desenhos animados) porque não considera seus filhos dignos. Ele tem razão, claro, seus quatro filhos são personalidades que navegam da inconsequência à perversidade, da infantilidade mimada à crueldade.
É como uma reescrita de Rei Lear se não houvesse nenhuma Cordélia para redimir a narrativa. Ou melhor, como se todas as filhas, incluindo Cordélia, fossem canalhas E amassem o pai ao mesmo tempo. O mais velho, Connor, é um hedonista sem noção desconsiderado por todos. Kendall, o segundo, é visto como o “herdeiro natural”, mas não tem carisma nem personalidade para suceder ou para contrapor-se ao pai. Shiv, a filha, é provavelmente a profissional mais competente, mas é desconsiderada até pelo pai por ser uma mulher. Também é a mais hipócrita, já que se acredita como mais “progressista” do que seus irmãos, mas é tão autocentrada e egomaníaca quanto eles. Roman, o mais novo (ou talvez a mais nova seja a Shiv, não me lembro, mas Roman é o filho homem mais novo), é uma figura infantilizada no limite da psicopatia.
Mas tem um detalhe: Logan é um buldogue narcisista à moda antiga e não consegue admitir que muitos dos desvios de personalidade e de caráter de seus filhos foram provocados por ele, um pai às vezes ausente, às vezes manipulador, abusivo quase sempre.
Outras séries
The Crown é uma série na Netflix que reconstitui em seis temporadas as décadas de reinado de Elizabeth II, personagem real recentemente falecida e mais longeva monarca na história britânica. A série dramatiza com altas doses de liberdade a vida da monarca e dos personagens da família real que gravitam à sua volta. Embora seja uma obra não autorizada pelo Palácio de Buckingham, é difícil não reparar no quanto há de chapa branca no retrato dos “royals” que emergem da atração. Elizabeth, chamada bastante jovem a suceder seu pai – por sua vez ele próprio um monarca inesperado coroado após a abdicação do irmão, Edward – é mostrada como uma personagem moldada ao longo das décadas por esse senso de mostrar-se à altura do dever que lhe foi confiado, esforçando-se mais do que qualquer um dos personagens de sua família (na série, ao menos), para ser o símbolo de neutralidade imparcial que a Coroa necessita.
Há outros elementos dramáticos que são usados no roteiro para criar os conflitos da história e dar camadas aos personagens que a discrição da corte (do mundo real) tenta vender como figuras de cera. Elisabeth e sua irmã Margareth compartilham destinos opostos: uma aceitou a tarefa de ser o Estado, distante e enigmático, enquanto a outra parece fazer tudo para destacar sua individualidade entre escândalos. Philip, o consorte real, é um homem ferido no orgulho de estar sempre em segundo plano e de ter de abrir mão de seu nome de família, entre outras coisas, para preservar a tradicional Casa de Windsor. No meio disso tudo, maquinações políticas e até mesmo constrangimentos da verdadeira porta giratória de Primeiros-Ministros que servem à rainha ao longo de seu reinado de sete décadas.
The Dropout é uma série da Hulu que andava no StarPlus, acho, e agora passou com todo o catálogo deste serviço para o Disney Plus. Conta, em oito episódios, a história da executiva da indústria farmacêutica Elizabeth Holmes, outra personagem real que, com seu carisma considerável, informações escamoteadas e promessas ambiciosas e irrealizáveis, captou milhões de dólares de investidores para sua companhia, que pretendia lançar no mercado um teste de sangue de uso rápido e muito barato. Na história, em vez de a moça ser retratada como uma executiva picareta com papo de coach, veem-se profundos dramas de consciência de uma personalidade ambiciosa demais para o seu próprio bem, tendo de enfrentar ainda (e também) um ecossistema pouco favorável a uma mulher que dá as ordens.
Humanizar
O que há em comum, estranhamente comum, aliás, em todos esses programas, ao menos no meu ponto de vista, é a forma desconcertante como, mesmo apresentando uma perspectiva crítica aqui e ali (ou ao menos declarando manifestar uma perspectiva crítica, mesmo que ela não seja totalmente visível no produto final), em nome da dramaticidade, promovem a humanização de gente muito rica e poderosa.
Como assim? Bilionários e monarcas vivendo no mais absoluto privilégio não são “humanos”? Sim, claro que são, no patamar mais básico da conversa. Por outro lado, a própria retórica do atual capitalismo triunfalista, hoje muito popular devido à disseminação do papo de coach, por um lado, e da ascensão de um neoliberalismo predatório sem muitos pruridos éticos, por outro, assenta-se no mito da excepcionalidade de tais indivíduos. No caso dos super-ricos, é a lenda da meritocracia a base dessa percepção.
No caso da monarquia inglesa e outras ainda vigentes no mundo, sou muito intrigado com a ginástica necessária para que uma monarquia seja também uma democracia constitucional moderna, porque há uma contradição em termos. Numa democracia moderna, em tese (não digo na prática, estou examinando conceitos), o eixo da coisa toda é a ideia de que qualquer pessoa pode se candidatar a um cargo com função política e ocupá-lo desde que seja votado pelos seus pares. Numa monarquia, o cargo máximo é sempre reservado aos descendentes mais ou menos diretos de uma mesma linhagem – na antiga Idade Média, porque esses seriam “os que Deus escolheu” (ignorando-se as muitas instâncias de traições e puxadas de tapete na história da Europa monárquica). Não sei qual seria o motivo ainda hoje, não sou especialista nisso, não é o centro aqui.
Poder e privilégio
O que eu realmente estou abordando neste texto é o quanto a ficção contemporânea ainda segue enamorada das figuras de poder e privilégio – hoje, em dia, financeiro, obviamente. E, embora qualquer uma dessas séries se apresente como uma história “crítica” ao seu principal objeto, na prática, não é assim que o entretenimento audiovisual de fato funciona.
Pegue o caso de outra série recente, The Boys, na Amazon. The Boys é, desde o começo, uma sátira ao gênero de super-heróis, investindo em uma ideia que deixa meio putos muitos dos nerdolas conservadores que curtem o gênero e que pode ser definida como a “falácia do Superman”. Superman, ou Super-Homem, vocês sabem quem é, é o personagem de quadrinhos criado por Jerry Siegel e Joe Shuster nos anos 1930 e que foi uma espécie de protótipo para toda a cultura do super-herói como personagem. Em uma trajetória de quase cem anos com a desse personagem, as interpretações que surgem são várias, mas um entendimento que se tornou recorrente nas histórias do personagem há décadas (ao menos nos quadrinhos, os filmes psicopatas do Zack Snyder meio que alteraram essa percepção do grande público, penso) é que Super-Homem é um ser alienígena de poder inimaginável, mas que se tornou um “defensor da verdade, da Justiça e do modo de vida americano” porque foi criado numa fazenda no interior americano por um casal com “valores” sólidos que formaram seu caráter (não são poucas as histórias em realidades alternativas nos quadrinhos que nos últimos anos tentando imaginar o resultado de uma mudança sutil nessa equação e fazendo a nave do futuro Super-Homem cair em outro lugar, como O Prego, de Alan Davis, ou Entre a Foice e o Martelo, de Mark Millar).
The Boys é apenas uma das obras recentes que contrariam essa lenda sem poupar cinismo. Retomando o mote de que figuras com poder são facilmente corrompíveis, a série retrata “heróis” com o poder de realizar coisas que a atual natureza e a física proíbem aos meros humanos, como soltar raios pelos olhos, ter força destrutiva e invulnerabilidade em larga escala, correr em velocidades impossíveis, etc. E, claro, a consequência lógica é que essas figuras abusam com muita facilidade desse tamanho poder.
Sátira
O “Super-Homem” desse universo em particular, o Capitão Pátria, um loiro narcisista que usa como capa a própria bandeira americana, foi gradativamente assumindo cada vez mais um discurso supremacista que aparta a “sua gente”, as pessoas com poderes, dos humanos comuns. Mas, veja bem, não foram poucos os fãs da série ao longo de suas quatro temporadas que se declararam fascinados pelo Capitão Pátria como personagem ou que o adotaram como um representante de suas próprias visões políticas, ao ponto de chocar a própria equipe de criação da série e o ator que interpreta o personagem, Anthony Starr.
Não é só que o público é meio burro, embora alguns lá no meio possam ser. Está aí um paradoxo da ficção audiovisual quando ela é bem realizada: o personagem que ganha mais destaque tende a ser aquele com quem o público se identifica e empatiza. Não importa se ele é o vilão no universo diegético da narrativa: o fato de ele ser interpretado por um ator carismático e ser claramente o personagem central para o qual muitas das tramas principais convergem o torna fascinante. Ao ponto que a última temporada do programa claramente parece ter perdido a mão da história que pretendia contar porque estava preocupada de modo absurdo em deixar a sátira muito clara (e a coisa mais deliciosa desse esforço todo, no fim bem-sucedido, foi que muitos parecem só ter descoberto O ALVO DA SÁTIRA agora que o botão do volume foi parar no número 11).
E se isso se processa quando a história tem uma clara intenção satírica, como no caso de The Boys, de que forma se dará esse fenômeno em atrações mais dramáticas em que a vida de gente muito rica e poderosa é dramatizada para que eles tenham “dramas comuns” a muitas pessoas bem menos confortáveis economicamente assistindo em seus sofás comprados em 24 prestações?
Humanizar outros
Succession é claramente inspirada em Rei Lear, o paralelo é óbvio para todo mundo. Também é, menos abertamente, uma sátira à vida do magnata do mundo real Rupert Murdoch e seus filhos. Mas há ali um substrato que pode ser traçado ainda ao que Aristóteles definia como tragédia no capítulo 1 de sua Poética:
“1. Como a imitação se aplica aos atos das personagens e estas não podem ser senão boas ou ruins (pois os caracteres dispõem-se quase nestas duas categorias apenas, diferindo só pela prática do vício ou da virtude), daí resulta que as personagens são representadas melhores, piores ou iguais a todos nós
(…)
7. É também essa diferença o que distingue a tragédia da comédia: uma se propõe imitar os homens, representando-os piores; a outra os torna melhores do que são na realidade”.
Para Aristóteles (e para boa parte da antiguidade, nesse sentido, a tragédia tirava seu potencial de comoção do fato de que as piores e mais infames desventuras eram jogadas pelos deuses sobre homens “melhores”, ou seja, “aristocratas, generais, heróis mitológicos” – ou seja, representações de poder e privilégio numa classe que havia se imposto como a dominante. Que ainda esteja sendo esse o elemento no terreno no qual a ficção contemporânea cavouca para buscar “grandes personagens” me parece um tanto preguiçoso e estereotipado. E não digo que isso seja feito com objetivos conspiratórios em mente, embora em alguns casos talvez seja, uma vez que um dos efeitos dessa abordagem é a criação de padrões de subjetividade favoráveis a esses personagens, adubando o canteiro do qual parece ter emergido para minha perplexidade essa horda de fãs de bilionários que se vê por aí.
Sei lá. Não tenho poder algum sobre isso, que nem a maioria de vocês, mas no íntimo eu me forço a buscar alternativas a esse cenário, nas quais, para variar, a ficção se disponha a humanizar os pobres.
Quem sabe?
Foto da Capa: Logan Roy (Brian Cox), da série Succession.
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