Está ficando cada vez mais claro que o Rio Grande do Sul (e o sul de Santa Catarina) apresentam um regime climático diferenciado do resto do Brasil. Basta vermos o que está acontecendo no momento. Enquanto boa parte do Brasil sofre com calor e seca, o Rio Grande do Sul vive a tragédia das chuvas e inundações. Muitas pessoas têm me perguntado: essa onda de calor tem algo a ver com as chuvas no Sul? A resposta é: claro, tem tudo a ver! Para isso basta examinarmos os principais controles do clima do Brasil e no Hemisfério Sul.
Células de Circulação Atmosférica
A irradiação solar atinge a Terra de maneira mais vertical nas regiões tropicais (latitudes mais baixas) e mais inclinada nas regiões de latitudes mais altas, a sul e a norte. Assim, a quantidade de irradiação recebida por metro quadrado e, consequentemente, o calor que a superfície aquecida1 transfere para a atmosfera, é maior nas regiões próximas ao equador e progressivamente menor na direção dos polos.
Para compensar essa diferença, desenvolvem-se várias células de circulação atmosférica e oceânica. Na maior delas, chamada de célula de Hadley, o ar aquecido da região equatorial ascende para a alta atmosfera e se desloca (em nosso hemisfério) no sentido sul, se resfriando progressivamente, até que fica denso o suficiente para descer para a baixa atmosfera. Esse ramo descendente da célula de Hadley ocorre em na região do paralelo 30 graus, que é a latitude de Porto Alegre!
Outra grande célula de circulação atmosférica ocorre a sul (no nosso hemisfério) da célula de Hadley, entre os 30 e os 60 graus de latitude: a célula de Ferrel. Nesse caso, o ar frio das regiões polares migra próximo à superfície no sentido norte, aquece, e ascende para a alta atmosfera no limite com a célula de Hadley. Esse ramo ascendente da célula de Ferrel se posiciona próximo ao mesmo paralelo 30.
Ou seja, o Rio Grande do Sul está posicionado exatamente no encontro entre as massas de ar frio vindas das regiões polares e as massas de ar quente vindas das regiões tropicais. Não é nenhuma surpresa, portanto, que seus padrões climáticos sejam bastante distintos das regiões Sudeste e Centro-Oeste, onde períodos de seis meses mais secos (outono e inverno) se intercalam de forma regular com períodos mais úmidos (primavera e verão), na chamada monção sul-americana (SMAS).
ASAS
O ar ainda relativamente quente do ramo descendente da célula de Hadley forma uma zona de alta pressão denominada de Alta Subtropical do Atlântico Sul (ASAS).
A ASAS se posiciona sobre a região central do Brasil nos meses do outono e inverno, e sobre o Oceano Atlântico durante os meses da primavera e do verão.
Acho que você já percebeu. É a atuação da ASAS que cria a monção sul-americana, formando a zona de alta pressão que, quando mais intensa, provoca as ondas de calor anormal como a que está ocorrendo agora no Centro-Oeste e no Sudeste, e bloqueando o avanço das frentes frias, que ficam estacionadas no sul do Brasil.
É também a atuação da ASAS que desvia os ventos que trazem a umidade da Amazônia, os chamados “rios voadores”, impedindo que adentrem a região central do país e criando um estreito canal de intensa umidade que se dirige diretamente para o Rio Grande do Sul.
Essencialmente, foi a combinação entre o bloqueio das frentes frias e o redirecionamento dos “rios voadores”, ambos causados pela atuação da Alta Tropical do Atlântico Sul que causou a recente tragédia no Sul.
Los Niños
Os singelos nomes El Niño (dado pelos pescadores peruanos ao fenômeno de aquecimento das águas do Pacífico, em homenagem ao Menino Jesus, pois costuma surgir na época do Natal), e La Niña se referem a ciclos de aquecimento (El Niño) e resfriamento (La Niña) das águas superficiais do Oceano Pacífico Equatorial. Esses ciclos, com durações que variam de 2 a 7 anos, exercem uma grande influência nos padrões climáticos globais, e ainda mais intensa na América do Sul2.
Em anos de El Niño tende a haver mais chuvas no sul do Brasil, e mais secas na região central. Em anos de La Niña ocorre o contrário: secas no Sul e muita chuva no Sudeste e no Centro-Oeste.
Estamos no final de um ciclo El Niño, que nem foi tão forte assim, pois no verão passado houve até um bom volume de chuvas no Sudeste (ainda que a grande seca da Amazônia de 2023 possa estar associada à sua atuação), e ele pode ter influenciado a intensidade das chuvas de 2023 e 2024 no Rio Grande do Sul.
O próximo verão, e pelo menos todo o ano de 2025, ocorrerão já com a atuação do fenômeno La Niña, o que significa que o Rio Grande do Sul deverá ter algum tempo para se recuperar das chuvas dos anos recentes, ainda que os agricultores tenham que se preparar para mais uma seca.
Por outro lado, o Centro-Oeste e, principalmente, o Sudeste, deverão se mobilizar para a ocorrência de chuvas intensas como as que ocorreram em 2022.
Se esses padrões sempre existiram, por que estão mais intensos?
Volta em meia alguém me faz a pergunta: “Mas se em 1941, quando o aquecimento era menor, como houve uma cheia quase tão grande como essa”? Ou (na Bahia): “Nos anos 1930, houve uma tremenda seca no Nordeste, e não havia aquecimento global”. Não havia em termos, pois o aquecimento começou com a era industrial, por volta 1750. Mas foi, de fato, até meados do século XX menos intenso.
A resposta para tais perguntas e afirmações tem sido repetida por muitos cientistas há décadas: eventos extremos sempre existiram, mas estão ficando mais frequentes e mais extremos. Parece óbvio, quase repetitivo, dizer isso. Mas não vai demorar para você também ouvir novamente essa pergunta.
O fato é que o aquecimento da atmosfera aumenta os contrastes de temperatura entre as massas de ar quente e frio, que é a causa da condensação do vapor d’água e sua precipitação como chuva. Além disso o aumento da temperatura faz com que a atmosfera absorva mais vapor d’água. Uma elevação de 1 grau na temperatura aumenta em 7% a quantidade de vapor d’água que a atmosfera consegue suportar.
O aquecimento global está causando outras mudanças nos padrões climáticos que os cientistas ainda estão tentando entender. Um exemplo é o comportamento dos ciclones extratropicais. Esses fenômenos são comuns no Atlântico Sul. São eles que, associados a frentes frias, distribuem o ar frio vindo das regiões polares para as áreas tropicais.
O que ocorre é que os ciclones tropicais tendiam a permanecer em alto mar, e raramente chegavam próximo à costa. No entanto, apenas no ano passado, o Rio Grande do Sul sofreu os efeitos da aproximação de pelo menos três desses ciclones, nos meses de junho, setembro (este responsável pela tragédia no Vale do Taquari) e novembro.
O ciclone de junho se comportou de maneira ainda mais estranha. Ele surgiu na costa do Paraná – um local já em si fora do comum – e rumou para o sul! Como eu disse acima, os ciclones transportam o ar frio para regiões mais quentes, portanto seu movimento normal é de sul para norte. Esse ciclone, que foi um dos maiores desastres naturais sofridos pelo Rio Grande do Sul até então, apenas antecipou o que estava para vir..
Além disso, estão aparecendo com mais frequência os chamados “ciclones bomba”, ou “explosivos” eventos extremos que surgem repentinamente em qualquer local do oceano, e por isso mesmo são mais imprevisíveis e potencialmente mais destrutivos.
Cenários futuros
O cenário futuro mais provável para o Sul do Brasil, considerando-se a maioria dos modelos climatológicos, é de aumento da temperatura média anual e da frequência das ondas de calor e secas3.
Por outro lado, também vai haver aumento de eventos extremos de chuvas intensas, inundações e deslizamentos, causados pelo represamento das frentes frias e redirecionamento dos “rios voadores”, como foi o evento recente, ou pela ação de anticiclones, ou dos dois efeitos combinados.
Ou seja, uma região que era caracterizada por um clima relativamente ameno na maior parte do ano e por padrões bastante previsíveis, estará sujeita a uma frequência muito maior de eventos catastróficos e grande imprevisibilidade climática.
Esse cenário vai exigir grandes esforços de adaptação, das cidades, dos agricultores, das indústrias e de toda infraestrutura social e econômica. A um custo humano e financeiro gigantesco. Mas é a única alternativa para que o estado mantenha seu nível de qualidade de vida e sua pujança econômica, que já estão sendo afetadas pela ocorrência de tais eventos.
Notas:
1Veja mais detalhes sobre esse processo na minha coluna de 23/10/2023, intitulada “E esse tal de efeito estufa?”
2Para mais detalhes sobre esses fenômenos consulte meu livro “Planeta Hostil”, que também descreve de forma abrangente os processos de degradação ambiental do planeta. Pode ser adquirido em livrarias de todo o Brasil, no site da editora Matrix (matrixeditora.com.br) ou na Amazon.
3Um livro que traz uma interessante discussão sobre as mudanças climáticas no Sul do Brasil é o “Espiral da Morte” do jornalista Cláudio Ângelo, publicado em 2013 pela Companhia das Letras. O livro pode ser comprado na Amazon.
Observação final: Para vídeos e textos adicionais confira também meu Instagram @marcomoraesciencia.
Foto da Capa: Climar | Reprodução do Youtube
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