Durante a histórica tragédia ambiental que assolou o estado do Rio Grande do Sul em maio de 2024, a comunidade acadêmica da Faculdade de Arquitetura da UFRGS se engajou na proposição de soluções que buscassem atender demandas emergenciais e mitigar os danos causados à população atingida pelas enchentes. Diante de uma catástrofe que afetou mais de 242 mil domicílios apenas na Região Metropolitana de Porto Alegre e levou à suspensão das atividades acadêmicas em toda a universidade, professores e estudantes se mobilizaram em ações solidárias para auxiliar tanto a comunidade acadêmica quanto a população em geral.
Entre as iniciativas da Faculdade, formou-se um grupo de pesquisa focado na fabricação digital, liderado pela professora Léia Bruscato e composto por professores e alunos de graduação e pós-graduação, da arquitetura e design. O objetivo do grupo era utilizar sua experiência e os recursos disponíveis para propor uma solução prática e eficaz.
Assim sendo, o grupo propôs um rodo de madeira para auxiliar na limpeza das casas após a redução do nível da água. Os principais requisitos deste rodo eram sua resistência mecânica para remover material pesado, como lodo ou outros tipos de resíduos das enchentes, e a viabilidade de fabricação em massa, dada a demanda emergencial, uma vez que o lodo precisa estar úmido para remoção. Além disso, a produção deveria ser em grande quantidade para atender às necessidades das residências afetadas em Porto Alegre e Região Metropolitana.
Com base nessas definições, foi proposto um modelo de corte automatizado, característico da fabricação digital. Este modelo permite a produção de uma grande quantidade de peças em um curto prazo, com otimizado aproveitamento da chapa de madeira. Além da rapidez na fabricação das peças, o modelo proposto pelo grupo visou facilitar a montagem, de modo que pudesse ser realizada pelos próprios alunos e professores. Isso dispensaria a necessidade de equipamentos específicos e mão de obra especializada para a montagem da ferramenta.
O processo passou por etapas de projeto, simulação digital e prototipagem até chegar à sua versão final. A prototipagem envolveu uma rede de colaboração entre universidades e iniciativas: Unisinos, TecnoPucrs e IdeiaPucrs disponibilizaram seus equipamentos para viabilizar o teste do modelo, num momento em que o prédio da Faculdade estava sem energia, devido às chuvas. Com o modelo aprovado, iniciou-se a produção. Um primeiro lote de 800 peças foi fabricado com financiamento de uma empresa privada e, após o sucesso logístico constatado, lançou-se uma campanha na internet para arrecadar fundos para a fabricação própria pela Faculdade. A alta comoção e engajamento da população fizeram com que a campanha viralizasse, arrecadando aproximadamente R$ 230 mil para a fabricação dos rodos.
Com os recursos para a produção em mãos, a universidade assumiu a logística para fabricar as peças: toda a matéria-prima e o corte terceirizado foram financiados com o dinheiro arrecadado, e a montagem foi realizada por alunos, professores e outros voluntários. A construção dos rodos aconteceu nas instalações da Faculdade de Arquitetura, envolvendo um alto nível de engajamento que transformou o espaço acadêmico em uma grande fábrica de rodos. A linha de produção foi expandida e otimizada pelos próprios alunos, que aprenderam sobre marcenaria e logística de produção no processo. A organização dos voluntários foi colaborativa e autogerenciada, integrando toda a comunidade de forma espontânea a partir do mesmo propósito: montar o maior número de rodos no menor tempo possível.
Além da montagem feita por alunos e professores da UFRGS, parcerias foram estabelecidas com TecnoPucrs, IdeiaPucrs e APAC Porto Alegre (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados de Porto Alegre) para produção de alguns lotes de rodos nas instalações dessas instituições. Nesses casos, o material e corte foram financiados com o dinheiro das arrecadações, enquanto os parceiros contribuíram com a montagem, formando-se uma rede de colaboração e troca mútua de experiências. Dentro da ideia de ação solidária colaborativa, é importante destacar que a Faculdade de Arquitetura disponibilizou em seu site todos os arquivos e informações necessárias para fabricação independente dos rodos por outras iniciativas que pudessem se interessar, como foi o caso do SENAI do Mato Grosso, que fabricou 500 unidades em suas instalações.
Um grupo de professores e alunos foi criado para organizar a logística de distribuição dos rodos para as localizações necessitadas. A partir de um levantamento de dados feito pelo grupo, baseado em solicitações da comunidade através das redes sociais da universidade, foram criados cerca de 30 centros de distribuição próximos às áreas mais afetadas. Esses centros foram distribuídos de forma pulverizada na cidade de Porto Alegre e Região Metropolitana, como Canoas, Sapucaia, São Leopoldo, Novo Hamburgo, Eldorado do Sul, Guaíba, e também em regiões mais distantes como a cidade de Pelotas. Para o transporte dos rodos, contou-se principalmente com a contribuição de voluntários independentes, veículos fornecidos pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio Grande do Sul (CAU/RS), e veículos mobilizados pelo Ministério Público do estado.
Foram fabricados com o valor das arrecadações um total de 6.000 rodos em duas semanas, que chegaram às pessoas em tempo para auxiliar na limpeza de suas casas. O sucesso da campanha demonstrou a relevância da ciência e tecnologia para proposição de soluções de amparo à população frente a uma catástrofe. Além disso, a ação ratificou o potencial que a colaboração e engajamento social tem para atender às demandas da sociedade — a campanha só foi possível devido ao engajamento maciço da população em suas diversas camadas. Esse engajamento se reflete pelas doações da população civil, pela disposição dos voluntários para a montagem, pela colaboração da rede de apoio de instituições parceiras e pelo auxílio à divulgação da causa por diversas plataformas e veículos, dentre elas o POA Inquieta, em especial no grupo de Arquitetura e Urbanismo do Coletivo.
A visibilidade dada à causa aumenta a confiança na universidade e na própria sociedade, fomentando o surgimento de outras causas semelhantes. Neste cenário, a UFRGS encara a confiança depositada com grande responsabilidade e já se mobiliza para se envolver em outras causas que possam auxiliar a população neste momento tão difícil.
Bárbara Ruschel Lorenzoni, arquiteta formada pela Faculdade de Arquitetura da Ufrgs, mestre em design pelo Programa de Pós Graduação em Design (UFRGS) e Doutoranda em arquitetura pelo Programa de Pós Graduação em Arquitetura (UFRGS).
Juliano Vasconcellos, professor do Departamento de Arquitetura da UFRGS e responsável pelo projeto de extensão Comunicação e Eventos da Faculdade de Arquitetura.
Foto da Capa: UFRGS / Divulgação
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