Duas pessoas morreram nas ruas de Porto Alegre na primeira noite de frio que aconteceu na cidade.
Assisti a um debate intenso sobre as causas da morte desses dois homens, o André Romário, mais conhecido como Romarinho, que já vivia há bastante tempo pelas ruas, ex-aluno da Escola Porto Alegre – EPA, que deixou muitos amigos pelas ruas, e o Antônio Carlos de Paula Souto, sobre o qual não se tem muitas informações, a não ser que parece que deixou uma irmã e de que era natural de São Gabriel. Vi um empurra-empurra de responsabilidades.
Os cidadãos da nossa capital vêm assistindo impassíveis ao aumento da população de rua pela cidade há anos. Reclamam da sua existência. Mas não tem coragem de olhar nos seus olhos. Clamam para que ela seja retirada das ruas pelas autoridades. No entanto, diante das violências que ela sofre, oferecem a indiferença. Está aí o incêndio da Garoa que causou a morte de 11 pessoas, feriu outras 15, mas já tem gente achando que está se fazendo barulho demais a respeito.
De acordo com denúncias dos movimentos sociais, a cada temporada a Guarda Municipal e o Departamento Municipal de Limpeza Urbana – DMLU retiram as pessoas dos lugares onde elas ousam se instalar. Parece um desaforo que pessoas sem-teto queiram ficar em espaços públicos, como praças, calçadas, viadutos. Mas, onde elas ficariam?
E é padrão a gente escutar a gestão pública responder aos órgãos fiscalizadores e à imprensa de que são oferecidas vagas para essas pessoas abordadas, mas que elas não aceitam. No entanto, olhando os números oficiais, é fácil fazer as contas e verificar que não há acomodação possível para todas as pessoas, nem se elas ficassem empilhadas*:
· Existem 5.546 pessoas em situação de rua em Porto Alegre.
· Há uma oferta de 828 vagas pela Prefeitura em espaços protegidos à noite.
· É feita a cobertura de cerca de 15% da população total, ou seja, a cada 100 pessoas na rua, só 15 estão protegidas à noite com serviços, tais como Abrigo, Albergue ou “Aluguel Social”.
Ou seja, essas ações de retirada das pessoas se fazem a serviço do quê? Para agradar a quem e a qual lógica de pensamento?
Para onde essas pessoas vão quando não “aceitam” ser levadas para um serviço de acolhimento? Infelizmente, o que acontece é a “limpeza” do espaço, o “alívio” dos que passam, na autoenganação de que o assunto foi resolvido, porque as pessoas continuam na rua. Pois quem estava ali simplesmente mudou para outro local, que em breve também será “despejado”, quem sabe tendo que retornar para o antigo.
A respeito dessas abordagens, um outro aspecto é a denúncia sobre a retirada de seus poucos pertences: colchão, cobertores, utensílios, documentos, exames de saúde, ração dos cachorros, tudo sendo colocado dentro de um caminhão e levado embora. E a vida precisa recomeçar a partir do nada.
Vamos combinar que, em qualquer época do ano, essa atitude não estaria correta, mas não é nesta época de frio que a gestão deve priorizar as operações de retirada das pessoas dos locais onde elas se encontram? A população já é fragilizada, vão deixar sem colchão e cobertas, sem pertences? E aí é porque se discutem os motivos das mortes do Romarinho e do Antônio Carlos, pois dias antes tinham sido feitas ações de “retirada da população de rua” debaixo do Viaduto da Conceição, o que se imagina pode ter fragilizado os dois.
A população de rua, hoje, no imaginário de muitas pessoas, está associada à violência e insegurança pública, porque muitos a acusam de que a maioria seja dependente química e/ou alcoolista. Porém, isso apenas demonstra o seu grau de fragilidade e vulnerabilidade. Afinal, estes problemas são assuntos de saúde pública, não de polícia. Para terem se tornado de polícia, é porque a saúde não está dando conta. E por que a saúde não está dando conta? É por falta de verba? Falta de gente? Falta de vontade política? Falta de cobrança e interesse dos cidadãos eleitores?
Outra questão é a prática de envio de pessoas em situação de rua para seus municípios de origem. Sei que muitos desejam isso. Porém, não nos enganemos, outros municípios fazem o mesmo. E para cá também enviam a sua “população de rua”. Então, haveremos de fazer um pacto social a esse respeito. Será que oferecer passagem intermunicipal é política pública?
Com a justificativa de desencorajar as pessoas a ficarem nas ruas, medidas foram tomadas para dificultar a vida das pessoas em situação de rua, como a diminuição dos banheiros públicos e do acesso à água em espaços públicos. Isso adiantou? Claro que não. Tornou a vida dessas pessoas mais cruel.
Grande parte dessas pessoas é trabalhadora. Vivem de bicos. Fazem pequenos serviços na vizinhança onde já são conhecidas. Como o Seu L., que todos os dias fica na minha rua, e o pessoal doa livros e utensílios pra ele vender na calçada. Ou que nos dias de feira carrega as compras para seus frequentadores. Também guardam carros. Grande maioria faz catação de resíduos, um trabalho valioso na cadeia da sustentabilidade, mas pouquíssimo valorizado. Dizem que eles fazem muita sujeira ao redor dos contêineres. Mas vamos combinar que a maior sujeira é de responsabilidade de quem coloca o lixo misturado, orgânico e seco, dentro deles… a tal população com teto. Eles, os sem-teto, acabam precisando se enfiar nas lixeiras para separá-lo.
Esses dias conversava com A. ela me contava que morava no bairro Glória com o companheiro e os seis cachorros. É pensionista do Exército. Ganha cerca de R$ 2 mil. Para irem morar numa casa melhor, tirou um empréstimo em seu nome e foram morar no bairro Navegantes. Veio a enchente e perdeu tudo, inclusive o companheiro. Sem nada, com empréstimo para pagar e os seis cachorros, foi parar na rua. Hoje ela vive de catação de resíduos. Tem família, filha, tios e primos. Mas não quer recorrer a ninguém porque deseja autonomia e eles iriam querer “dizer o que ela deve fazer”. Seu empréstimo vai até 2027. Vive sozinha e é assim que quer ficar, em paz, com saúde e com seus cachorros, que são superbem cuidados.
A população em situação de rua é consequência. Consequência de uma série de problemas na área da habitação, saúde, assistência social, trabalho, segurança pública, mudanças climáticas, entre outras. Então, as abordagens precisam ser pensadas, construídas e realizadas com a sociedade civil, multidisciplinarmente, como políticas de estado.
Precisamos olhar cada pessoa que está na rua como se fosse um de nós. Gente.
(*) Dados do Coletivo Passa e Repassa
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Foto da Capa: Fernando Frazão / Agência Brasil