Na Caçapava do Sul dos anos 90, ter uma caranga da hora fazia de qualquer Pedro de Lara um Marcos Palmeira.
Provavelmente não se usava a expressão “caranga”, e acredito que “da hora” já era uma gíria de outros tempos, também. Mas tenho certeza de que o Marcos Palmeira era um galã da época, dada a quantidade de aparições-relâmpago dele em festas de 15 anos, mesmo naquela pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul.
Deve fazer muito bem pra autoestima ser pago pra ser bonito e bajulado pela mulherada.
Acho que foi naquela época que eu estabeleci um ideal de vida: ter a auto-estima do Marcos Palmeira. “Nível Marcos Palmeira de confiança de si”: tá aí uma inusitada escala, tipo a Richter, mas para os abalos sísmicos de confiança. Até hoje, acho que não passei do nível 4 (de um máximo de 9).
De todo modo, ter um carro era sinal de status entre os adolescentes sem carteira de motorista ou os jovens debutantes na direção de Caçapava do Sul.
Da minha parte, eu só viria a fazer a Belina azul-escuro dos meus pais engasgar na arrancada alguns anos mais adiante – maldito descompasso entre “tirar o pé devagar da embreagem e acelerar com cuidado” -, mas isso não impedia que eu ficasse hipnotizado pelo estouro do escapamento do carro do meu vizinho com seus 18 anos recém-completados.
Cada estrondo daquele Escort XR3 soava pra mim como os primeiros versos do hino do País da Masculinidade. Uma nação para a qual, na época, eu ainda me sentia na fila para tirar o visto de entrada.
Mas eu chegava até a fronteira: toda sexta-feira à noite, eu e meus amigos achávamos algum motivo para passar pela frente do clube da cidade, point privilegiados dos boyzinhos e das patricinhas. Talvez também não fosse assim que a gente chamava, mas tudo bem: eram os Eduardos e Mônicas que íam todo final de semana para aquela festa estranha, com gente esquisita – mas que pareciam “estar legal”, ainda que Renato Russo profetizasse o contrário.
Alías, do porta-malas do carro do meu vizinho saía um alto e bom som, uma música da hora. Entre as preferidas estavam aquelas bandas que já à época estavam mais pra lá do que pra cá. Como costuma acontecer em toda cidade do interior, a gosto musical da população está em geral uns 30 ou 40 anos atrasado: é o que hoje chamamos de retrogosto entre os conhecedores da alta gastronomia (algo que também não sou, aliás, o que rebaixa o meu prestígio na EMP, na Escala Marcos Palmeira).
O menu du jour costumava ter como entrada Smoke on the Water, do Deep Purple, pra deixar claro desde o começo que os Eduardos não tavam ali de brincadeira. Depois, o prato principal variava entre os hits das reuniões dançantes: November Rain, do Guns’n’Roses, Starway to Heaven, do Led (não pegava bem usar o nome todo da banda) ou Born to be Wild, daquele grupo que ninguém sabia o nome. Depois que o lobo da estepe saía de cena, vinha a sobremesa, servida pelos próprios Eduardos: já passada da indecente umadamanhã (tudo junto, como uma faixa de proteção), alguém materializava do ar um violão de corda de nylon e emendava umas 4 ou 5 do Legião. As Mônicas riam e acabavam querendo saber um pouco mais sobre os boyzinhos que tentavam impressionar.
E conseguiam, diga-se de passagem: nível de EMP nas alturas, todo mundo ali embriagado pela ingênua certeza da transgressão adolescente.
Nessa hora, eu e meus amigos (EMP entre 2-4, todos nós) íamos embora. A pé ou de camelo, mas ainda cantando aquele o refrão: “Smooooooke on the waaaater… and fire in the sky”. Claro que a gente não sabia a letra em inglês, mas preciso que o leitor me permita a licença poética que não me deixe assim como uma figura tão down.
Fato é que alguns anos depois – ainda eu errando a proporção embreagem/acelerador – aconteceu uma coisa bem diferente.
Numa dessas sextas-feiras de escapamentos furados e guitarras estridentes tudo subitamente ficou muito, muito quieto. Silêncio. A roda da gurizada começou a abrir e o pessoal foi indo embora de uma hora pra outra. Eu e meus amigos fomos chegando mais perto pra ver o que tinha acontecido.
Uma das Mônicas estava caída no meio-fio, apoiada num braço dobrado e chorando.
A gente não sabia se podia chegar muito perto, se aquela faixa de segurança etária podia ser ultrapassada. Mas dali onde estávamos dava pra ver que ela tinha um mancha no lado direito do rosto, perto do olho, na altura onde hoje em dia devem estar as marcas de expressão dos olhos dela. Aquela marca tinha uma cor muito escura, um roxo profundo – deep purple.
Segundos depois, o Eduardo já tinha dado a partida no Escort XR3 e ido embora, cantando, mas desse vez cantava pneu.
Um dos Eduardos levantou a Mônica da calçada e tirou ela daquela festa que tinha ficado muito mais estranha e com gente muito mais esquisita.
Ninguém ali tava legal.
No dia seguinte, eu ouvi a mãe do Eduardo gritando: “Tu foi piá. Tu foi um merda de um piá”. Foi a manhã toda isso. O pai do Eduardo: “Não grita assim com o guri. Tu não vê que ele tá aprendendo? Tu não vê que isso foi só coisa de guri?”
Acho que essa foi a primeira vez que eu vi esse Brasil em que os homens são sempre meninos que estão aprendendo. Um país em que todos nós, homens, estamos aprendendo tanto que já somos todos pós-doutores, pelo jeito.
Um país em que os “meninos” sonegam impostos, dizimam povos, negam vacina, estupram mulheres no dia do enterro da sogra. Gol do Brasil? Salve a seleção!
Dos canarinhos que não voam.
Um país em que o grande irmão ameaça dar cotoveladas nas mulheres.
Um país cheio de Mônicas que nunca conseguem comprar a maldita escadaria pro Paraíso.
Um Brasil que olha tanto pros Zepelins e que finge ignorar quanta pedra e merda joga nas Genis.
Uma nação que mal e mal consegue soltar a embreagem e pressionar o acelerador, que não quer machucar os dedos com corda de metal e que deixa um retrogosto de ódio e misoginia a cada garfada.
Acho que foi naquela noite que eu deixei de usar a Escala Marcos Palmeira como referência pra medir o quão homem eu era ou seria.
E também foi quando eu entendi que a masculinidade é escandalosa e barulhenta. Como um ridículo escapamento furado.