A Holanda é conhecida pelos seus moinhos e canais, mas poucos sabem da histórica enchente de 1953, quando ondas de 5,6 metros do Mar do Norte inundaram parte dos territórios da Holanda, Bélgica, Inglaterra e Escócia e provocaram a morte de 8.000 pessoas. Esta tragédia foi a “turning point”. A partir de então foram desenvolvidas tecnologias que levaram a Holanda a ser hoje o país referência mundial em controle de inundações. O país tem 26% da sua área abaixo do nível do mar e 60% está em área considerada de risco. Portanto, tudo precisa funcionar para que novas tragédias não venham acontecer.
Esta devastação levou a Holanda a desenvolver um enorme projeto de proteção contra inundações chamado de “Delta Works”, que envolveu a construção de barragens, diques e outras estruturas que foram construídas entre 1959 e 1995. Para isto, foram feitos investimentos em educação e no desenvolvimento de tecnologias, que tornaram os holandeses especialistas nestes temas. A Universidade Tecnológica Delf (TUDelft) se tornou referência no campo de engenharia hidráulica e o IHE Delft Institute of Water Education se concentra em questões e soluções hídricas da terra ao mar. Ou seja, existe tecnologia para o controle de inundações.
O Rio Grande do Sul (RS) já possui universidades, institutos de pesquisas, especialistas, técnicos capacitados em órgãos públicos e estruturas capazes de desenvolver um plano de curto, médio e longo prazo para evitar/minimizar os danos de futuras catástrofes ambientais. Por que não transformar esta tragédia numa oportunidade de reconstrução da infraestrutura do RS e das cidades em outras bases, já prevendo que novas tragédias possam vir a ocorrer? Em menos de um ano o Estado sofreu três enchentes. Rezemos por uma trégua, mas as previsões são de que os eventos extremos continuarão ocorrendo, se não com a mesma frequência, mas provavelmente num futuro próximo. É preciso estarmos preparados e termos planos e ações de curto, médio e longo prazo para enfrentarmos novas adversidades. Precisamos de políticas de Estado, que ultrapassem os quatro anos dos mandatos dos governantes.
O RS tem capacidade técnica e inteligência que vem sendo desprezada pelos governantes. Agora terá recurso para a reconstrução e, se não houver mobilização da sociedade, os governantes e políticos do Estado irão pensar no que é melhor para a sua reeleição, desperdiçando a chance de mudarmos o rumo da história, de transformarmos o estado numa “Holanda dos Pampas”. Um Estado que desenvolva as tecnologias apropriadas a sua realidade e que a aplique para promover o seu desenvolvimento, protegendo a natureza, evitando os alagamentos e assegurando a vida.
Os desafios são enormes, talvez bairros ou cidades precisem mudar de lugar. As cidades deverão repensar e incentivar o transporte público, a coleta seletiva e as privatizações dos serviços de água e esgoto. Os agricultores terão que cuidar melhor dos banhados e das margens dos rios/riachos. O setor imobiliário não poderá construir em locais inapropriados, assim como outros que afetam o meio ambiente, terão que reduzir sua sede de lucros. Os políticos, em todas as instâncias, terão que revogar as leis e retirar os projetos de lei que agridem o meio ambiente. Os cidadãos precisarão ser reeducados para entenderem que uma pequena ação, como jogar lixo na rua, pode resultar em alagamentos.
Segundo reportagem da Deutsche Welle, três projetos do chamado “Pacote da destruição ambiental” são de autoria/relatoria de políticos gaúchos: PL 364/2019 que elimina a proteção de todos os campos nativos e outras formas não florestais de autoria de Alceu Moreira (MDB), com relatório favorável de Lucas Redecker (PSDB). No Senado, a PL 1282/2019, apresentada pelo Senador Luis Carlos Heinze (PP) que autoriza obras de irrigação em áreas de preservação permanente, aguardado parecer de Afonso Hamm (PP). A população precisa se inteirar destes projetos e, se não concordar, encontrar formas de se manifestar e evitar a sua aprovação. Mais do que nunca, a população precisa tomar conhecimento dos projetos de lei que estão tramitando, independente de quem proponha e a que setor favoreça, pois quando ocorrem as tragédias, todos são afetados e muitas vezes por decorrência destes projetos.
Ou fazemos deste limão uma limonada, ou ele vai nos arder nos olhos muitas vezes. Não esperemos pelas autoridades. A mesma sociedade que deu um show de mobilização e solidariedade, agora precisa mostrar que pode fazer o mesmo, cobrando que sejam apresentados planos e projetos sobre a aplicação dos recursos e do que será feito para evitar que o problema se repita. Como fazer? Teremos que inventar formas de participação e democracia direta usando redes sociais, inteligência artificial etc. e o antigo e eficiente protesto presencial. A responsabilidade está também nas nossas mãos.
Referências:
A inundação do Mar do Norte – Environmental and Society
Senado segue pauta antiambiental em meio a enchentes no RS – Deutsche Welle
Pacote de destruição – 28 propostas no Congresso – Congresso em Foco
Foto da Capa: Holanda-Deltaworks | Divulgação
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