Rua, simples rua. Elemento tão vital e cotidiano de nossas vidas: cheias, barulhentas, enfumaçadas, desertas, perigosas, antigas, novas, feias, agradáveis ou indiferentes. O que significam? Por que já não são o que foram? Por que não eram como são?
Enveredemos, num passeio atento, por estas ruas e vejamos quanta coisa elas têm a nos mostrar.
Comecemos pelos confusos caminhos da Idade Média: ruas tortas, que formavam labirintos protetores de seus habitantes, não tinham nenhum disciplinamento além daquele do entendimento natural de seus usuários. A rua servia para tudo: de depósito de lixo à feira, as atividades se sucediam ocupando cada qual seu espaço e seu tempo num cronograma de difícil formulação. Ruas que se transformavam muitas vezes em pistas de corridas ou praça de disputas.
As praças não eram praças: os caminhos se alargavam e se estreitavam de uma maneira tão sutil que era difícil distinguir a praça da rua ou vice-versa. O que não era espaço construído era público e este era palco de uso múltiplo.
Por ocasião de festas, estas tomavam conta da cidade. Quem não gostasse de festa que não saísse de casa, porque esta era da cidade na cidade: ninguém era poupado. Vale dizer que a coisa não era muito diferente em tempo de guerra ou revoltas. Tudo o que passasse dentro dos muros era problema de todos, mesmo que a responsabilidade fosse de poucos.
Esta organização do burgo medieval não representava, de maneira alguma, uma evolução natural da forma de organização interna das cidades. Ela era, isto sim, a configuração espacial de uma época.
A cidade romana tinha sido diferente.
A existência de um império, um poder extralocal, fazia com que a cidade cumprisse determinados objetivos, que se manifestavam em sua organização. Vila de conquista e colonização, a cidade romana era retilínea, própria para exercícios militares. Dois eixos principais apontando para os pontos cardeais e os prédios públicos alinhados de acordo com os padrões de monumentalidade oficiais deixavam bem claro: havia uma ordem a respeitar.
Não importa mostrar aqui a evolução das cidades na história, o que se quer é registrar a vinculação do desenho urbano com seu tempo, com a organização política, social e econômica de cada época. As ruas representam a forma de assentamento característico de uma época e vão se transformando e se sobrepondo à medida que a história o exige.
Dito isso, entremos na nossa rua.
Longe de estar voltada à satisfação das aspirações de seus cidadãos, a cidade atual cumpre determinados papeis de acordo com princípios ordenadores basicamente fundamentados na produção e consumo. Dentro de uma escala legível para todos, as cidades cumprem papeis perfeitamente hierarquizados de acordo com suas funções especializadas: cidade capital política, cidade industrial, portuária, turística, histórica e os binômios ou trinômios que se possam fazer e que acarretarão, sem dúvida, graus superiores na referida escala.
Todo mundo diria que, por exemplo, Bagé é menos importante que Porto Alegre. Menos importante para quem? Certamente não para seus habitantes. Menos importante para o sistema que as organiza, que as submete à logica da eficiência capitalista da produção e da sujeição aos seus poderes. Organização que é conseguida através da aplicação criteriosa de investimentos públicos e privados, o que acaba fazendo com que as “mais importantes” cresçam mais e recebam mais recursos do que as “menos importantes”, perpetuando o processo. As cidades maiores e mais ricas atraem mais pessoas. A leitura é de organização coerente e natural, mas é só a forma econômica e social que escolhemos para ocupar o território.
A organização interna das cidades - o seu desenho urbano – está sujeita aos mesmos desígnios que conformam o sistema urbano mais geral que acabamos de ver. Claro, ela não é a resposta simples e mecânica ao sistema que a organiza, ela tem suas próprias contradições, seu passado e seu futuro misturados na resposta ao presente. Encarada como um organismo a funcionar (para cumprir os papeis a ela cabidos), chegou-se, com Le Corbusier, a uma análise minuciosa de suas funções internas: trabalho, habitação, comércio e lazer, cultura incluída aqui. Quatro especializações básicas que geram outras: circulação, segurança, saneamento, etc. Especializações que foram dividindo os espaços da cidade. Áreas para as indústrias, parques para recreação, ruas de comércio e zonas residenciais. Especializações que, dividindo, organizam o todo e, o que é fundamental, permitem o crescimento desmesurado deste mesmo todo.
As ruas, nosso contato mais imediato com a cidade, também se especializaram: passeios, estacionamentos e asfalto para veículos rodarem com velocidade. As ruas se organizam para cumprirem seus papeis. Algumas ganharam ciclovias, outras faixas exclusivas de ônibus. E a evolução do processo levou a algumas radicalizações: ruas só para automóveis (vias expressas), só para pedestres (calçadões). E a alguns exageros: a supressão pura e simples da rua. Reflexo de nossa época a rua pode desaparecer. Em seu lugar , esplanadas, os mall dos shopping centers, os estacionamentos subterrâneos, as vias expressas elevadas, etc.
Nada disso é utopia, é a mais pura realidade. Em algumas grandes cidades do mundo, pode-se viver meses sem pisar uma única vez em um passeio de rua tradicional (que felizmente estão por aí). Morando numa das cidades novas que rodeiam Paris você caminhará por esplanadas e passarelas, passando sobre vias expressas e estacionamentos e descerá ao subsolo onde se encontra a estação de metrô que o deixará sob um shopping center ou sob um grande edifício de escritórios e serviços no bairro de La Defense, por exemplo.
A revolução industrial fragmentou e especializou a sociedade, nossas cidades são o resultado de mais de dois séculos deste processo. Difícil é dizer até quando isto durará. Mas, em todo caso, há indícios de mudanças quando percebemos a existência de uma busca pelo passado, pela cidade antiga, pela rua tradicional, estreita, sinuosa e múltipla. Sabemos que nada disso voltará. Pode ser apenas esgotamento do modelo atual e sinal de uma gestação em andamento. Possivelmente reflexo do encerramento da era analógica para entrada na era digital. Para onde estamos indo, não sabemos, mas prestar atenção em nossas ruas pode ser revelador dos novos caminhos.