Parecia a final da Copa do Mundo. Não se falava de outra coisa nas casas, nas ruas, nas redes sociais. Nem mesmo o Carnaval teve tanto impacto quanto nos outros anos. Tomada de enorme euforia, grande parte dos brasileiros esperava ansiosa pela hora de comemorar a tão esperada vitória. Uma conquista que, talvez, não viesse – postergada para, quem sabe, mais vinte e seis anos, já que desde 1999 um filme brasileiro não havia sido indicado ao Oscar. Mesmo assim, o clima já era de festa. As conversas giravam em torno da indicação e das possibilidades, e mesmo os céticos não podiam deixar de se contagiar com a energia do momento.
Para muitos, o Oscar deixava de ser apenas uma premiação e se transformava num símbolo da força do cinema brasileiro, capaz de unir gerações e resgatar a identidade cultural. Era a chance de mostrar que, mesmo diante de desafios e incertezas, a arte continuava a pulsar forte, refletindo a resiliência e o talento de um país que se recusa a se calar. Em meio a esse fervor, o Brasil celebrava não só um indicativo de sucesso, mas a esperança de dias melhores – e a certeza de que, enquanto a paixão pelo cinema permanecesse viva, sempre haveria motivos para acreditar e comemorar.
Das três categorias em que concorreu, “Ainda estou aqui” levou apenas a estatueta de melhor filme internacional. As outras duas, de melhor atriz e melhor filme, não foram conquistadas, gerando revolta naqueles que esperavam um triunfo absoluto, depois de uma produção brasileira ter chegado tão longe. Entretanto, a relevância da obra não se limita ao brilho dos troféus. Ao trazer à tona a incansável busca de Eunice Paiva por justiça, o filme de Walter Salles força a sociedade brasileira a encarar de frente um passado mal resolvido, escondido debaixo do tapete. Um passado de crimes impunes que precisam vir à tona para que nunca mais voltem a acontecer.
A morte de Rubens Paiva é um desses crimes que o Brasil ainda não conseguiu superar. Preso ilegalmente em 1971, durante os anos mais duros da ditadura militar, o ex-deputado foi levado ao DOI-Codi no Rio de Janeiro e nunca mais foi visto com vida. O governo da época divulgou a versão oficial de que ele havia fugido, mas a verdade — revelada anos depois — é que foi brutalmente torturado e assassinado dentro do quartel. Seu corpo nunca foi entregue à família, sua história ficou marcada pela impunidade, e sua esposa, Eunice Paiva, passou o resto da vida buscando respostas que o Estado nunca forneceu.
Em Crime sem Castigo — seu mais recente lançamento —, a jornalista Juliana Dal Piva revela, a partir de documentos inéditos, como a repressão se mobilizou para encobrir o assassinato de Rubens Paiva, monitorando de perto aqueles que tentavam desvendar o caso. As investigações, iniciadas ainda em 1971, avançaram lentamente até 2014, quando o grupo de Justiça de Transição do Ministério Público Federal no Rio de Janeiro denunciou cinco militares pelo crime. Dois deles já estavam mortos à época da acusação. Os demais, apesar das evidências contundentes, jamais foram julgados e seguem impunes, recebendo seus altos salários sem jamais terem prestado contas à Justiça.
O filme de Walter Salles, ao recontar essa história, reavivou feridas que nunca cicatrizaram por completo. Enquanto o Brasil vibrava com a conquista do Oscar, a narrativa de ‘Ainda estou aqui’ lembrava que há vitórias que ainda não foram alcançadas. A memória de Rubens Paiva e de tantos outros desaparecidos políticos segue como um lembrete incômodo da negligência do Estado com sua própria história.
A estatueta dourada na mão do diretor simbolizava, para muitos, o reconhecimento de um cinema que não se esquiva da verdade. Mas, para outros, era também uma amarga constatação: nas telas, a justiça pode ser feita. Na vida real, os crimes da ditadura seguem sem castigo.
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Foto da Capa: Reprodução