Sempre busquei na arte um jeito de me reconhecer e viver entre “os seres ditos normais” com a minha diferença, às vezes me sentindo absurdamente estrangeira. Foi assim que descobri um caminho para a integração de pessoas estranhas no ninho, que me amparou, estimulou e estimula nas tantas andanças. Essa descoberta, que veio através da arte, foi muito singular na sua amplitude. Uma espécie de salvação que descortinou o avesso do avesso de todos nós.
O baiano Waly Salomão, uma das grandes figuras da contracultura brasileira, escritor que atuou em diversas áreas e foi um dos integrantes do movimento tropicalista nos anos 1960, dizia que a poesia é uma maneira de entender e se adequar à vida como ela é. Talvez por isso a poesia tenha pousado cedo no meu cotidiano e não nos largamos mais. Recentemente, reli alguns comentários sobre Wally, um outsider que revelou muitos outros. Sua primeira publicação foi “Me segura qu’eu vou dar um troço” (1972). Alguns anos depois, em 1997, ele ganhou o Prêmio Jabuti de Literatura com o livro de poesia “Algaravias”. Seu último livro “Pescados Vivos” foi publicado em 2004, após a sua morte.
Um livro na cesta básica, proposta genial de Waly Salomão.
O quinto de sete filhos de um imigrante sírio com uma sertaneja, Waly cursou Direito na Universidade Federal da Bahia nos anos 1960, mas nunca exerceu a profissão. Optou pela arte. Foi para a Escola de Teatro na mesma universidade, estudou inglês em Nova Iorque e acabou se tornando um letrista de canções de sucesso como “Vapor Barato”, parceria com Jards Macalé – “Oh, sim, eu estou tão cansado / Mas não pra dizer / Que eu não acredito mais em você / Com minhas calças vermelhas / Meu casaco de general / Cheio de Anéis / Vou descendo por todas as ruas / E vou tomar aquele velho navio” – que Gal Costa interpretou com a alma. Suas músicas foram cantadas também por Maria Bethânia, Caetano Veloso, Adriana Calcanhotto, O Rappa, entre outros. Nos anos 1990, produziu dois trabalhos de Cássia Eller – “Veneno AntiMonotonia” (1997) e “Veneno Vivo” (1998). Trabalhou com Gilberto Gil como Secretário Nacional do Livro no Ministério da Cultura, quando propôs a inclusão de um livro na cesta básica.
Nas releituras sobre Waly me dei conta que foi ele o organizador do livro “Torquato Neto, Os Últimos Dias de Paupéria” (Núcleo de Atualidades/Editora Max Limonad Ltda/1982) um instigante jornalista brasileiro nos anos 1960/1970/1980, ligado à contracultura. Assim ratifiquei minha certeza de que a criatividade é um desafio cotidiano. Possibilita mudar a ordem das coisas, alterar normas, provocar pequenas suspensões, sonhar, imaginar, abraçar utopias e “caminhar no contrafluxo de uma procissão religiosa”. Andar contra a corrente é uma maneira corajosa, generosa e lúdica de desbravar novos caminhos que podem nos tirar da burocracia que controla o nosso tempo. Aquele tempo “cartão ponto” a que somos submetidos e nos acostumamos, mas que na maioria das vezes nos escraviza.
Não estamos em competição e a vida não é uma linha reta sem obstáculos.
Romper com o determinismo, produzir incertezas, alimentar a dúvida e a curiosidade abre um universo de possibilidades no nosso cotidiano. É bom entendermos que há limites entre dor e prazer, saber e não saber e que é impossível controlar tudo. Só as mentes arrogantes acham que isso é possível. Temos momentos práticos, momentos frágeis, momentos poderosos e poéticos, todos necessários. Temos dúvidas. Buscamos respostas. As diferenças sociais gritam. A vida não cabe na meritocracia. Os conflitos têm inúmeras origens e precisam ser olhados com atenção, discernimento e respeito.
Nosso país, por exemplo, é feito de misturas culturais desde a formação. Mas não reconhecemos essa rica diversidade humana, cheia de arte, como deve ser reconhecida. Nossa história carrega uma vasta carga de preconceito que reproduzimos ainda hoje. Reconhecer a violência do racismo e reagir de forma efetiva é atitude fundamental para enfrentar a discriminação que se estende para a população indígena, quilombola, cigana, LGBTQi+, pessoas com deficiência, moradores de rua, os excluídos de um modo geral, que são muitos. Precisamos olhar para as questões sociais, extinguir verdadeiramente os rastros da escravidão e reconhecer as raízes culturais da nossa brasilidade. Raízes que nos deram coragem para encarar o cotidiano, nem sempre cordial, buscar a nossa essência para ser o que somos, mas especialmente nos deram ginga, cadência, humanidade e sabedoria para não permitir que a discriminação nos domine.
A grandeza da existência humana é a pluralidade. É compreender com as múltiplas diferenças que nos constituem a riqueza e o valor da nossa diversidade.
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